Quando cheguei ao último degrau olhei para trás e senti-me como se deve sentir alguém que está a ter um pequeno AVC: quantos degraus é que eu subira nos meus mais lentos 60 segundos de sempre? Agarrei-me firmemente ao corrimão para que as vertigens não me levassem e respirei fundo.
O breve alívio desapareceu quando olhei para a minha esquerda e vi a ladeira que ainda tinha pela frente. A inclinação de uns 30º transformou-se de repente numa de 60º e o desânimo atingiu-me como um raio. Olhei para o relógio: faltavam 10 minutos para a hora marcada, e se havia coisa que detestava era chegar atrasado a um encontro, mesmo que o mesmo – como me parecia ser o caso – não tivesse objectivamente qualquer interesse para mim. Pior que isso, só mesmo ter que esperar pelos outros.
Tentei raciocinar. Mais valia perder 2 minutos a recuperar o fôlego e fazer o resto da subida a passo cadenciado, do que me fazer à maluca à ladeira e cair a meio, sem coração nem pulmões para percorrer o resto. E assim fiz.
Depois, o resto era terreno plano, engrenei o meu “dépéche mode”, mantive a cadência, de vez em quando ia refrescando a cara com a toalha ainda ligeiramente molhada e que me deixava um ligeiro sabor a sal nos lábios.
Cheguei à esplanada combinada com um minuto de avanço. Sentei-me completamente estafado. O empregado parecia que estava emboscado à minha espera porque mal me sentara, apareceu a perguntar-me o que queria:
- Uma cidra muito fresca – pedi.
Trouxe-me uma Magners precisamente na altura em que o Rui chegava. Ligeiramente atrasado, bufando e com o “Música de Praia” debaixo do braço, e que pousou na mesa ao mesmo tempo que se sentava pesadamente. Via-se que também ele fizera um esforço para chegar a horas.
- Andas a ler Conroy? perguntei
- Não gostas? Parece que detectei um certo desdém na pergunta.
- Gostei desse livro, mas já o li há muito tempo. O problema com os autores americanos é que os confundo uns com os outros. Durante muito tempo pensei que tivesse sido esse gajo que escrevera o American Psycho.
Olhou-me um bocado escandalizado. Tinha sempre em alta conta a literatura, e achava que eu a tratava com alguma ligeireza.
- De certeza que nunca confundiste o Hemingway com o Miller.
- Não. Mas isso foi porque sempre detestei o Hemingway (aquilo foi deliberado, eu sabia que o Ernest era um dos seus favoritos) e sempre gostei moderadamente do Miller – claro que, face a esta declaração, os cabelos se lhe puseram em pé - Eu explico-te: em relação aos vivos, acho que seguem uma linha um bocado comum, a escritores não vivos, tenho sempre grande dificuldade em dissociar a vida particular da obra. E como sempre achei o Hemingway um cobardolas, nunca tive a sua obra em grande conta.
- O Hemingway um cobarde? O homem combateu na guerra civil espanhola, enfrentava touros, sempre teve uma vida plena de aventuras…
- O facto de gostar de touradas até é bem demonstrativo do que digo. Além disso, podes dizer que provocava desacatos e que sovou o Scott Ftzgerald, que ele sabia ser um intelectual que não fazia mal a uma mosca e muito mais fraco que ele. O homem era um bully. Cheira-me que a participação na guerra foi uma questão de protagonismo. Já agora, também se suicidou. Se isso não é cobardia…
- Bem, isso é discutível...
- Em contrapartida, o Miller era um gajo chão. Vivia da exploração da ordinarice e utilizava linguagem rasteira. E isso já me agrada mais. Embora não façam o meu estilo, não me desagradam de todo, tipos assim. É como ver um filme pornográfico – penso que o Miller não desdenharia certamente de dirigir um – que nos provocam invariavelmente alguma decepção porque o final é sempre previsível, mas pelo menos já sabemos ao que vamos. Não somos enganados. Pelo contrário, eu vim-me a esfalfar da praia para um encontro contigo aqui, e o objecto desse encontro ainda nem sequer foi aflorado.
Ele pigarreou nitidamente nervoso com a minha abordagem ao assunto e disse:
- Então? Agora bebes cidra?
- Bebo. É fresca e não é muito alcoólica. Se fosse mais eu desatava aqui a suar, e a última coisa que pretendo quando me apresentares a Bruna é estar suado. Só ainda não percebo porque fazes questão em me a apresentar. A não ser que seja como aquela tua namorada de há dois anos que tinha uma fronha que parecia um retrato pintado pelo Velasquez na sua fase negra e que só me falava do Livro de São Cipriano.
Enquanto eu falava, ele ia ficando cada vez mais embatucado e eu ia gozando o prato
- A explicação é simples: a Bruna é a minha namorada, faço tenção de casar com ela, e como nos estamos sempre a cruzar e tu por vezes me colocas em situações embaraçosas, resolvi que ela te conhecesse logo de princípio e fizesse a avaliação dela para evitar mal entendidos futuros.
Não percebi bem aquela lenga-lenga das situações embaraçosas e avaliações, mas dei-lhe o benefício da dúvida.
- Casar? Tu? Ok, tudo bem. Mas porque é que ela ainda não apareceu? É das atrasadinhas?
- Não. Eu marquei-lhe com 5 minutos de diferença, para ir preparando o terreno contigo. Olha, ali vem ela.
Olhei e fiquei chocado. Parecia-me estar a ter um déjà-vu. Sabia que a mulher era brasileira – não sei porquê, o nome dela trouxe-me lembranças da Lombardi dos anos de ouro – mas nunca imaginei que fosse a encarnação da Elisa, a minha obsessão de adolescência, e que o safado do Rui tão bem conhecera. Estava explicado o embaraço dele, e a procrastinação em abordar o assunto.
O breve alívio desapareceu quando olhei para a minha esquerda e vi a ladeira que ainda tinha pela frente. A inclinação de uns 30º transformou-se de repente numa de 60º e o desânimo atingiu-me como um raio. Olhei para o relógio: faltavam 10 minutos para a hora marcada, e se havia coisa que detestava era chegar atrasado a um encontro, mesmo que o mesmo – como me parecia ser o caso – não tivesse objectivamente qualquer interesse para mim. Pior que isso, só mesmo ter que esperar pelos outros.
Tentei raciocinar. Mais valia perder 2 minutos a recuperar o fôlego e fazer o resto da subida a passo cadenciado, do que me fazer à maluca à ladeira e cair a meio, sem coração nem pulmões para percorrer o resto. E assim fiz.
Depois, o resto era terreno plano, engrenei o meu “dépéche mode”, mantive a cadência, de vez em quando ia refrescando a cara com a toalha ainda ligeiramente molhada e que me deixava um ligeiro sabor a sal nos lábios.
Cheguei à esplanada combinada com um minuto de avanço. Sentei-me completamente estafado. O empregado parecia que estava emboscado à minha espera porque mal me sentara, apareceu a perguntar-me o que queria:
- Uma cidra muito fresca – pedi.
Trouxe-me uma Magners precisamente na altura em que o Rui chegava. Ligeiramente atrasado, bufando e com o “Música de Praia” debaixo do braço, e que pousou na mesa ao mesmo tempo que se sentava pesadamente. Via-se que também ele fizera um esforço para chegar a horas.
- Andas a ler Conroy? perguntei
- Não gostas? Parece que detectei um certo desdém na pergunta.
- Gostei desse livro, mas já o li há muito tempo. O problema com os autores americanos é que os confundo uns com os outros. Durante muito tempo pensei que tivesse sido esse gajo que escrevera o American Psycho.
Olhou-me um bocado escandalizado. Tinha sempre em alta conta a literatura, e achava que eu a tratava com alguma ligeireza.
- De certeza que nunca confundiste o Hemingway com o Miller.
- Não. Mas isso foi porque sempre detestei o Hemingway (aquilo foi deliberado, eu sabia que o Ernest era um dos seus favoritos) e sempre gostei moderadamente do Miller – claro que, face a esta declaração, os cabelos se lhe puseram em pé - Eu explico-te: em relação aos vivos, acho que seguem uma linha um bocado comum, a escritores não vivos, tenho sempre grande dificuldade em dissociar a vida particular da obra. E como sempre achei o Hemingway um cobardolas, nunca tive a sua obra em grande conta.
- O Hemingway um cobarde? O homem combateu na guerra civil espanhola, enfrentava touros, sempre teve uma vida plena de aventuras…
- O facto de gostar de touradas até é bem demonstrativo do que digo. Além disso, podes dizer que provocava desacatos e que sovou o Scott Ftzgerald, que ele sabia ser um intelectual que não fazia mal a uma mosca e muito mais fraco que ele. O homem era um bully. Cheira-me que a participação na guerra foi uma questão de protagonismo. Já agora, também se suicidou. Se isso não é cobardia…
- Bem, isso é discutível...
- Em contrapartida, o Miller era um gajo chão. Vivia da exploração da ordinarice e utilizava linguagem rasteira. E isso já me agrada mais. Embora não façam o meu estilo, não me desagradam de todo, tipos assim. É como ver um filme pornográfico – penso que o Miller não desdenharia certamente de dirigir um – que nos provocam invariavelmente alguma decepção porque o final é sempre previsível, mas pelo menos já sabemos ao que vamos. Não somos enganados. Pelo contrário, eu vim-me a esfalfar da praia para um encontro contigo aqui, e o objecto desse encontro ainda nem sequer foi aflorado.
Ele pigarreou nitidamente nervoso com a minha abordagem ao assunto e disse:
- Então? Agora bebes cidra?
- Bebo. É fresca e não é muito alcoólica. Se fosse mais eu desatava aqui a suar, e a última coisa que pretendo quando me apresentares a Bruna é estar suado. Só ainda não percebo porque fazes questão em me a apresentar. A não ser que seja como aquela tua namorada de há dois anos que tinha uma fronha que parecia um retrato pintado pelo Velasquez na sua fase negra e que só me falava do Livro de São Cipriano.
Enquanto eu falava, ele ia ficando cada vez mais embatucado e eu ia gozando o prato
- A explicação é simples: a Bruna é a minha namorada, faço tenção de casar com ela, e como nos estamos sempre a cruzar e tu por vezes me colocas em situações embaraçosas, resolvi que ela te conhecesse logo de princípio e fizesse a avaliação dela para evitar mal entendidos futuros.
Não percebi bem aquela lenga-lenga das situações embaraçosas e avaliações, mas dei-lhe o benefício da dúvida.
- Casar? Tu? Ok, tudo bem. Mas porque é que ela ainda não apareceu? É das atrasadinhas?
- Não. Eu marquei-lhe com 5 minutos de diferença, para ir preparando o terreno contigo. Olha, ali vem ela.
Olhei e fiquei chocado. Parecia-me estar a ter um déjà-vu. Sabia que a mulher era brasileira – não sei porquê, o nome dela trouxe-me lembranças da Lombardi dos anos de ouro – mas nunca imaginei que fosse a encarnação da Elisa, a minha obsessão de adolescência, e que o safado do Rui tão bem conhecera. Estava explicado o embaraço dele, e a procrastinação em abordar o assunto.
Eheheh, de uma coisa podes estar a certo: as tuas histórias têm sempre um final imprevisível. Quer dizer, tirando as do Marcelino, que essas já se sabe que terminam em disparate... :)))
ResponderEliminarEspero que a foto da menina com a mamoca ao léu não seja da Elisa... :)
Adorei o teu conto! Beijocas!
Ernest também não me agrada. Ou melhor, a sua vida é muito mais interessante que os livros. Não digo que seja um cobardolas, até pelo contrário. Mas o ponto é esse: gosto da persona, não gosto por ali além do que escreveu. Miller sim, grande autor. Dos grandes americanos. Mas eu gosto dos americanos. Gosto da forma nua como escrevem, e gosto da forma como, quase sempre vão beber aos franceses. Vide o caso Bukowski e Céline.
ResponderEliminarFinal inesperado, gostei, devia ter continuação.
ResponderEliminarA tua vida dava um livro deveras interessante, julgo eu.
ResponderEliminarBeijinhos e boas férias.
Também acho, faltou conclusão...Egoismo involuntário de sua parte? Abraço!
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