terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Post Adiado Desde Dia 12 (Parte II . Conclusão e Conclusões)

Desta vez, cheguei mais rápido às mãos do médico que haveria de ser o “meu médico”, e nem precisou de biópsia para me dizer que o bicho tinha atacado noutro lado.
Não tinha relação com o anterior e nem sequer era da mesma “família”. Situava-se no trígono, e desta não me escaparia a uma intervenção cirúrgica. A questão era que a intervenção implicava a remoção de uma parte do maxilar inferior e a sua posterior reconstituição. Como já tinha encontrado alguns desses casos nas consultas externas, sabia bem do que tal implicaria e isso bateu-me com força, mas nunca perdi verdadeiramente a serenidade.
Como me tinha sido dito que a reconstituição só poderia ter lugar quando estivesse recuperado da operação, comecei a pensar que iria ficar uns 6 ou 7 meses sem sair de casa.
Poucas semanas depois fui chamado para internamento, mas primeiro teria que fazer uma bateria de exames. Depois, e como tudo estava conforme, foram-me dadas instruções de como as coisas se passariam. Agradou-me o facto de ficar num quarto só com mais dois homens – as outras enfermarias tinham oito doentes e eram mais barulhentas e menos privadas – mas desagradou-me o facto de não saber ao certo em que dia seria operado.
Avisaram-me que todas as manhãs teria que estar preparado, e assim se passaram 3 ou 4 dias em que me levantava e permanecia em jejum até perto da hora do almoço, altura em que alguém se chegava a mim e me dizia que já não seria esse o dia, uma vez que as vagas para operação se tinham esgotado. Até que não resisti mais àquela incerteza com que todos os dias acordava, vesti-me normalmente, fiz a mala e fui ao gabinete da responsável do piso e lhe comuniquei que a minha paciência se tinha esgotado e não estava para passar mais dias no hospital, em vão.
Portanto, comuniquei-lhe que iria para casa e aguardaria uma chamada deles no dia em que tivessem uma vaga para mim. A senhora ficou um bocado embatucada mas entendeu, e aceitou a decisão tal como o médico que me iria operar. Era uma 4ª feira e na 6ª seguinte recebi uma chamada a comunicar-me que me deveria apresentar no domingo seguinte até às 20h, uma vez que seria operado na 2ª feira. E assim fiz.
O problema que me surgiu nessa noite, foi que quase não preguei olho: é que desde a 1ª vez que lá estivera e em que me tinham dado sempre um comprimido de xanax para adormecer, tornara-me dependente desse fármaco – nunca tive um dormir fácil, excepto em criança – e nessa noite não sei o que me deram, mas não teve qualquer efeito sobre o meu organismo.
No dia seguinte, dia 12 de Outubro de 1998, vieram-me buscar pelas 7h, pelo que, pelas minhas contas, me anestesiaram um pouco antes das 8 e que a última coisa em que pensei foi “Se acordar, muito bem. Se não…”.
Acordei por volta das 17h, nove horas depois, portanto, à entrada para a enfermaria de recobro onde a minha mulher me esperava para me dizer que tinha tudo corrido bem. Soube depois, que quando me vira, tinha desmaiado pela 1ª vez na sua vida, o que pode dar uma ideia sobre a minha aparência.
O que mais me preocupou foi não conseguir falar: tinham-me metido uma sonda gástrica pelo nariz, pela qual me alimentaria, e feito uma traqueotomia, (que consiste em enfiar um tubo na base do pescoço perfurando a traqueia e por aí passando a respirar), de modo a que a parte operada fosse resguardada, uma vez que todos os mucos que habitualmente passavam para o nariz, passariam antes, a usar essa via.
A traqueotomia, durante os 1ºs dias é particularmente aflitiva, parece sempre que se vai sufocar e as vias respiratórias têm que ser repetidamente aspiradas, de modo a que estejam sempre desobstruidas, mas nem isso alivia muito a sensação de sufoco.
Antes pensara que sairia da operação com um penso na cara, mas verifiquei então que toda a minha parte esquerda – cabeça, pescoço e tronco, estava coberta de ligaduras, o que me preocupou bastante, uma vez que não me explicaram o que se tinha passado, só a minha mulher me disse para não me preocupar com a fala, porque só teria que aguentar a traqueotomia durante uns dias e que quando me fosse removida, voltaria a falar e a respirar normalmente.
O que ela me disse sossegou-me mas a noite foi terrível: não conseguia dormir visto os comprimidos que me deram para dormir, não fazerem qualquer efeito, sentia muitas dificuldades respiratórias, e pela 1ª vez na minha vida, pensei que poderia não passar aquela noite, chegando a ver-me num túnel bem escuro. E como o tempo demorava a passar…
Pelos procedimentos habituais, e visto que na óptica dos médicos, tudo estava a correr bem, na manhã seguinte teria que ir para o meu quarto pelo meu pé. (no IPO, havia - penso que ainda há - o bom hábito de tentar tornar os doentes, independentes o mais depressa possível) Essa iniciativa aconteceu quando a minha mulher me foi visitar (aliás, ela passava lá praticamente o dia todo), ela ajudou-me a por de pé, só que o corpo não me obedecia, o máximo que conseguia era sentar-me na cama, mas ainda assim enchia-me de náuseas e caía para o lado. Definitivamente, não me conseguia por de pé, mesmo com as enfermeiras a tentar amparar-me.
Chamaram o meu médico, contaram-lhe o que se passava e ele mandou que me fizessem análises ao sangue. Os resultados só chegaram ao anoitecer e os valores da hemoglobina estavam nos 7 e pouco o que era alarmante, visto os valores normais se situarem pelos 13/13,5, Estava explicada a minha fraqueza. Chamaram de imediato a médica de banco que mandou que me fizessem urgentemente uma transfusão, e 2 unidades de sangue foram-me administradas durante toda a noite, que se passou novamente de forma terrível, embora não tanto como a anterior, e sem eu conseguir pregar olho.
72 horas em branco!
Na manhã seguinte e graças à transfusão, já me sentia um pouco melhor melhor. E lá fui para o quarto, nessa altura já sem necessidade de qualquer ajuda..
Depois, foi o tentar retomar as minhas rotinas higiénicas, mas tomar banho era difícil (nos 1ºs dias com a ajuda da minha mulher, para não molhar as ligaduras e pensos), fazer a barba quase impossível. Quando me tiraram as ligaduras para me fazerem o 1º curativo apercebi-me realmente do que se passara: tinha uma costura que me partia do queixo, ia até ao pescoço, daí bifurcava até à orelha esquerda e pelo pescoço abaixo, contornando o braço esquerdo, e daí para baixo, até uns centímetros abaixo do peito esquerdo. Parecia o Frankenstein. Estive 5 dias sem me conseguir olhar no espelho.
Entretanto foi-me explicado que tudo aquilo se devia ao facto de o médico ter aproveitado para fazer logo após a operação de remoção da parte afectada, a reconstrução do maxilar com a ajuda do músculo peitoral esquerdo. Enfim, não ficou exactamente como se não lhe tivessem tocado, mas a verdade é que uns meses depois, não se notava assim tanto o remendo. O problema principal ficou a ser mesmo de ordem funcional, uma vez que como me faltava a dobradiça que movia o maxilar esquerdo, o acto de mastigar tornou-se mais complicado.
Passei a andar com um um bloco e uma esferográfica comigo. A minha forma de comunicar era a escrita. Às 10h e às 19h eram horas de ir à sala de tratamentos onde uma enfermeira me limpava o tubo da traqueia (os doentes que ficavam com o tubo definitivamente, eram ensinados a fazer essa operação por si, a tal questão de autonomia de que falei acima), mas aquilo era um bocado traumatizante, havia alguns que pareciam viver só para aquela hora, acho que era a única altura em que sentiam que tinham alguém que lhes dava atenção, e então, mais de meia hora antes, já andavam a pairar por ao pé da porta da sala, que só se abria mesmo às horas marcadas. Pareciam zombies.
Não vou falar das desgraças que por lá vi, nem de como as noites, apesar de já conseguir dormir umas horas, custavam a passar – já de posse das minhas faculdades pedi ao médico para alterar a minha medicação para dormir – ou de como ficava feliz quando chegava a hora das visitas. Tentei passar os dias entretido, até porque estava preparado para lá ficar um par de semanas ou mais, e fiquei muito surpreendido quando, na 4ª feira da semana seguinte, o médico me tirou o tubo da traqueia. A surpresa de me ouvir a falar de novo, foi algo do outro mundo. Há muito tempo que uma coisa tão simples como aquela não me deixava tão feliz.
E as coisas melhoraram quando ele me disse que teria alta no dia seguinte. Acho que nessa noite não dormi bem, mas dessa vez por boas razões.
Portanto, na manhá do dia 22 de Outubro de 1998, o médico tirou-me uma parte dos pontos – eram cento e tal e não me perguntem porque não os tirou todos, porque não sei e nem lhe perguntei o porquê – e disse-me para lá voltar na manhã seguinte para tirar os que restavam. Depois, foi contar as horas e minutos até sair.
E no outro dia, conforme o combinado lá estava eu, e acreditem ou não, e apesar de mal poder mexer o pescoço, fui eu que conduzi o carro de casa até ao hospital e volta.
O resto, não tem história, fui melhorando, tirei a sonda e comecei a comer pelas vias normais, embora algumas coisas não conseguisse mastigar - foi um dos preços a pagar – e retomei o trabalho no meu emprego.
Hoje, assim à distância de 14 anos, acho que custou mais á minha mulher que a mim próprio.
 
Como da primeira vez, as consultas que começaram por ser semanais, foram-se espaçando, até passarem a ser anuais. E aos 5 anos o carcinoma foi considerado extinto, mas as consultas anuais continuaram.
Tudo em paz portanto, até 2010, e tudo o que já vos contei em Maio, e que aparentemente está a correr bem. Aparentemente. (Daqui a 2 meses o confirmarei, e em Maio, eventualmente, reforçarei as certezas.)
Doze anos depois…
Não tenho grandes conclusões a tirar de tudo isto. Que espero que daqui a mais ou menos 3 anos e meio o médico me diga que o bicho está “morto”? Sim, tenho esperança que isso aconteça. E que se assim for, é a terceira vez que o venço e isso me poderia transmitir uma sensação de triunfo? Nem por isso, porque agora já sei que no campo médico não posso ter certezas nenhumas, e que, nestes casos não há curas que se possam considerar definitivas. Porque um doente oncológico o é para toda a vida.
Mas o que recuso mesmo é entregar-me sem dar luta ou deixar-me cair nas malhas da depressão.
E já agora, ir vivendo um dia de cada vez, o melhor que posso, mantendo o meu humor, tarefa que por vezes não é assim tão fácil.
 
Nota 1: Tendo presente tudo o que se tem passado comigo, uma certeza eu tenho: nestas minhas reincidentes surtidas ao IPO, fui sempre bem tratado e não acredito que o fosse melhor em qualquer hospital particular, pelo que cada vez abomino mais os opróbrios que se lançam quase diariamente sobre o SNS.
Nota 2: Já agora, posso acrescentar, que a cicatriz que me marca desde a orelha esquerda até abaixo do peito, resultado da operação narrada, não se nota assim tanto e é bem mais aceitável que algumas tatuagens.

24 comentários:

  1. Não imaginas a força que me deste para começar a falar do mieloma múltiplo que se instalou (como se fosse a sua própria casa...) numa das pessoa mais importantes da minha vida. Obrigada, Vic... Vic de vic(tória)!

    :)

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  2. Este post é triste, assustador e um bom murro no estômago para todos nós que achamos que a vida nos tem dado muito pouco. Mas é também um texto de esperança, de alegria, de vontade de continuar. Espero, honestamente, que tudo te corra bem e espero também, para o caso de me bater à porta algo semelhante, eu tenha a mesma força para estar ao nível da situação.

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  3. Um beijo Vic e obrigada por teres partilhado!
    Como diz a nêspera Vic de Victória!

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  4. Tem sido uma árdua luta, Vic, e só espero que tenha terminado. Obrigada pela partilha, e desejo, do fundo do coração, que tenham terminado os sustos e ansiedades. Beijinhos gordos.

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  5. Obrigada pela partilha Vic ❤
    E os desejos de que esta luta com o bicho mau seja curta e que saias VICtorioso ;)

    Um grande abraço

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  6. Forca aí Vic! A malta está contigo! :)

    PS: nao é forca, é forca com c cedilhado, mas por estas bandas teclados com cedilhas e tils nao abundam! Mas tu sabes! :D

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  7. Fiquei muito comovida ao ler-te, não no sentimento de pena ou comiseração, mas de orgulho (sim, orgulho) por teres resistido uma e outra e outra vez e estares aqui, quase diariamente, a espalhar boa disposição e bom gosto. Mesmo quando poderias ter todos os motivos para não o fazeres.

    És um forte. Inspiraste em mim um grande respeito (maior do que o que já tinha) por ti.

    A minha vénia.

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  8. Vic, estou com a Uma Rapariga Simples, mais que uma história triste, é uma história de força, de vontade, de batalhas vencidas. Obrigada por partilhares pedaços da tua história, Vic, continua com essa força.

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  9. Força, meu caro! Isso é bem mais importante que o seu Sporting ser campeão. Grande abraço. JC

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  10. Obrigado por partilhares o teu percurso connosco.
    Obrigado por nos lembrares que enquanto houver estrada para andar, para a frente é que é caminho.

    Continua a sorrir sempre.
    Podem derrubar-nos, mas não nos podem quebrar.

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  11. Um amigo meu, que fez uma cirurgia idêntica à tua (pelo que entendi, que palavreado médico não é o meu forte) mas mais recentemente, dizia-me há uns tempos: "Quando acordo, olho para os meus dedos dos pés, vejo que eles ainda mexem e digo: 'Então vamos a isto! Um dia de cada vez!'"

    Acho que só saberei se tenho coragem idêntica à vossa, se algum dia algo semelhante me bater à porta. É esperar que nesse capítulo continue ignorante, mas louvo a coragem e a força de viver de quem passou por tudo isso e continua a recusar a auto-comiseração!

    Um abraço, Vic!

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  12. Vic, este post foi lido com ansiedade, com a ansiedade de chegar ao fim e saber que está tudo a correr bem.
    Não sei comentá-lo, apenas digo que me sinto honrada e feliz. Honrada por te conhecer - virtualmente, claro - e feliz por te saber lucidamente combativo.

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  13. É em alturas destas que buscamos força onde não sabíamos que a tínhamos.
    É inspiradora a tua força, obrigado pela partilha!

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  14. Fiquei muito satisfeito por não ter sido mal interpretado por ninguém.
    Com efeito, não se tratava de um texto de auto-comiseração, ou de choradinho.
    É meramente o relato de factos, e a forma como reagi. E talvez - desculpem a presunção - mostrar que por vezes, um pouco de espírito positivo e o não dar tanta importância a coisas que a princípio nos parecem terríveis ou inultrapassáveis, pode ajudar um pouco.~
    Também que não vale a pena sermos fatalistas, mas termos sempre presente que no dia em que nascemos, é o primeiro em que começamos a correr o perigo de morrer, que nada é eterno, muito menos nós.
    Mais uma vez, obrigado a todos pela vosse sensibilidade e percepção. Só demonstra que já me conhecem um bocadinho :)

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  15. Admito que me custou ler algumas partes deste teu relato, Vic. Só queria chegar ao fim e confirmar que estás bem. E assim foi :)
    Já te disse, há uns meses atrás, quando tocaste no assunto, que te admiro imenso não só por esta parte da tua vida como também por quem demonstras ser em cada post que escreves. Repito, também, que fiquei a admirar, e muito, a tua mulher.
    Um beijo muito grande!!

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  16. A tua colocação destes episódios foi para ti. estritamente salutar...abriste o peito e cada palavra, embora relembrando tristes momentos, te reforça o ego, a tua coragem, a tua percepção e aceitação sem medos maiores de nossa fragilidade, visto que viemos do pó e a ele retornaremos*. Coloca todos estes comentários num microprocessador, bebe-os aos pouquinhos, a cada dia, sempre,como se bebesses um elixir de longa vida.

    (*)- eu já não, pois já formalizei minha preferência pela cremação.

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  17. A vida é, de facto, uma roleta. Fico muito feliz que estejas bem e que, apesar do que passaste, consigas partilhar a tua história com uma nota final de humor :)

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  18. Partilho contigo a impressão positiva do IPO. Não foi um "choradinho" mas garanto-te que qualquer um fica comovido ao ler o teu relato assombroso. E fizeste bem em escrever sobre isso porque a sensação que temos ao mergulhar nessa realidade (como paciente ou como familiar de paciente) é a de que existe uma rotina muito natural na doença / morte que nos é completamente escondida no dia a dia e surge como um choque grotesco quando aparece. Força e abraço

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  19. Gostei muito de ficar a conhecer-te um pouco melhor, Vic. Obrigado pela partilha. (E, já agora, acho que as cicatrizes são muito interessantes!)

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  20. Não vi este post.
    Quero acreditar que há razões para sorrir.:))

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  21. Uma partilha onde a luz se faz presente.

    Tens uma história e tanto.

    Bem tens razão quando aconselhas em viver cada instante.

    Tens de estar agradecido apesar do sofrimento.

    E teres família carinhosa não tem preço.

    Espero que esteja tudo bem contigo.

    beijinho

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  22. Mais uma vez, obrigado aos que responderam após a minha anterior resposta
    Os meus respeitos a todos.

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  23. Cheguei ao fim do texto com o coração nas mãos, ainda bem que está tudo bem e espero que o problema tenha mesmo "morrido". Admiro a sua força.

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!