sexta-feira, 17 de maio de 2013

Desenrascar, um Verbo Português

Acho mesmo que é a única língua em que o verbo “desenrascar” existe, mesmo não tendo feito qualquer investigação, e baseando-me somente nas idiossincrasias dos meus compatriotas. E é um verbo que, no que me diz respeito, nunca resultou em meu favor-
A primeira vez que travei conhecimento com ele – o meu vocabulário ainda não era muito vasto – foi nas vésperas do exame de matemática do 2º ano do Liceu (ah! Velhos tempos em que ainda havia liceus) e quando disse a um colega meu de cujo já só me recordo a alcunha, “Pitágoras”, que estava lixado, porque estava completamente às escuras em relação à matéria do 3º período.
- Eh pá, isso é fácil. Faz uma cábula.
- O que é isso?
- És mesmo nabo. É um rolinho de papel pequenino onde escreves com letra pequenina as partes mais importantes da matéria. (bom…vocês devem saber como é, que aquilo se apertava na mão esquerda e se ia desenrolando e consultando quando necessário de preferência quando o professor não estivesse a ver, etc, etc…)
- Não consigo fazer isso, pá. A minha letra é muito grande além de que tenho a certeza de que era logo apagado - enfim, o meu dilema não era moral (naquela idade e nestas coisas a nossa noção de moral é sempre um bocado elástica) mas sim de ordem racional e de ter bem noção das minhas fragilidades.
- Bom, eu posso desenrascar-te. Faço-te uma cábula impecável, mas vais ter que pagar. Pode ser o 79 dos bonecos da bola.
Ora o 79 era o Perrichon do Sp. Braga e era o número mais difícil, o chamado número da bola. A minha reacção foi de quase horror e de lhe dar uma nega: aquele cromo tinha-me custado uma nota e muito tempo a conseguir.
Bem, com uma dor de alma do caraças, lá fui aliviado do Perrichon e recebi, ao fim de um par de horas, um rolinho escrito com uma letra miudinha e que parecia um mini rolo de papel higiénico.
Nesse dia ainda dei uma vista de olhos pela matéria em questão - duvidava um bocado da eficácia de estudos de última hora, mas a minha confiança no rolinho de papel também era muita  - e no outro dia lá fui para o exame a tremer e com a cábula no bolso esquerdo. Escusado será dizer, que o papelinho de lá não saiu porque me acagacei de tal maneira que durante todo o tempo parecia que o sacana do professor não tirava os olhos de mim.
No final, o exame até não correu muito mal e eu fiquei a chorar o Perrichon pelo menos durante as férias todas.
O verbo que assim tinha entrado no meu léxico, regressou uns anos mais tarde, quando o Alexandre, conhecido no nosso círculo por Magoo por usar uns óculos com umas lentes que pareciam o fundo de uma garrafa, me abordou uma vez e me disse:
- Eh pá, f#$%-se, tens cá uma sorte com as gajas! Ainda ontem ias com três, hein? Bem me podias desenrascar uma. Não tenho sorte nenhuma com elas. Podia ser que se me as apresentasses...
É claro que não me admirava nada com a pouca sorte dele com as pequenas. É que, pelo menos naquela época, elas não achavam muita piada a um tipo que, quando falava, em cada frase, largava dois ou três palavrões.
- Tás enganado, Xandre. Devo ter a mesma sorte que tu. Duas delas eram minhas primas, e mesmo que não o fossem, já têm ambas namorado.
- E a outra? E a outra? Podias-me desenrascar com a outra.
- És parvo ou quê? A outra era a tua irmã.
Mais tarde, quando fui para a tropa, calhou-me ir para Cavalaria, e só quem por lá passou, sabe como aquilo era, um género de filme de terror ao ralenti, uma vez que os dias pareciam demorar semanas, e as tropelias que nos faziam eram inenarráveis.
Um dia na revista, o alferes que comandava o meu pelotão achou que eu tinha o cabelo grande e avisou-me que se aparecesse na parada do dia seguinte sem o cabelo cortado, ia-me arrepender.
Quando ele mandou destroçar, pedi licença para lhe falar e disse:
- Meu alferes, não sei como vou poder cortar o cabelo hoje, porque a barbearia agora está fechada, e a seguir ao jantar vamos logo para a instrução nocturna - ao que ele me respondeu arreganhando os dentes como um pastor alemão e num tom de voz capaz de me furar os tímpanos. Ambos.
- Desenrasque-se!!
É claro não me desenrasquei e no outro dia, o 1º a quem o gajo inspeccionou fui eu e lá me aplicou uma carecada e me cortou a ida a casa no fim de semana seguinte. Fiquei lindo. A minha cabeça com um bocadinho de creme hidratante parecia a bola branca do snooker. Andei três semanas a fazer a barba - e em cavalaria tinha que se fazer a barba duas vezes por dia - sem olhar para o espelho.
A partir daí e até hoje, muitas vezes eu ouvi o verbo, mas nunca em situações que me favorecessem. A última foi na semana passada. O Marcelino chegou-se ao pé de mim e disse-me:
- Eh pá, desenrasca-me aí 500 melins!
- Tu estás doido! Ou já te esqueceste de que foste almoçar à tasca do Adérito durante uma semana e lhe disseste que tinha sido eu que te tinha lá mandado ir comer em troca de umas canalizações que me tinhas ido arranjar lá em casa, um barrete do caraças, e que depois ia lá pagar. Tu lá percebes alguma coisa de canalizador! Ainda por cima, apanhei uma vergonhaça do caraças porque o Adérito veio-me cobrar ao pé do quiosque do jornaleiro, à frente de toda a gente.
- Eh pá, tu tens que perceber, ando mal de finanças e andava com uma fome do catano, tinha que me desenrascar de qualquer maneira.
- Se calhar, se trabalhasses era capaz de ajudar.
- Bom, não desvies a conversa. Afinal, desenrascas os 500 melins ou não?
Enfim, não tenho grandes simpatias pelo verbo desenrascar.

4 comentários:

  1. Não é verbo que costume conjugar, mas é vulgar na cultura portuguesa, tal como certos palavrões.
    Tem a ver com Hábitos e educações.

    Por aqui não é verbo necessário.
    A escrita encanta.

    beijinho

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  2. A capacidade de 'desenrasque' dos portugueses já se transformou numa das características mais referidas por empresários estrangeiros, quando procuram portugueses para contratar... há desenrasques que são apreciados.

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  3. Portugal é o país dos desenrascados. Por isso é que há tantas coisas que saem mal feitas e depois também somos os melhores a remediar. Lol.
    Seja bem aparecido, caro Vic! Faça lá uma visita ao meu cafofo que se não fosse pela sexo e a idade nem sabia do teu regresso.
    Estás bem? O motivo da tua ausência ficou resolvido?
    Beijinhos

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  4. Se não fosse o desenrascanço, desporto nacional de excelência, provavelmente não teria desenrascado esta bela estória!
    Bom fds

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!