segunda-feira, 2 de abril de 2012

#2 - Marília (Ansiedade)

05:10 am, Rue de Levis. A ansiedade é um despertador. Demasiado. Deixei a chave na recepção, o homem quase nem olhou para mim: "Chambre 23"; "Merci, m'sieu, bonne journée"; "Vous aussi". Que diabo, ainda faltavam quase 2 horas. "Gare du Nórd às 7, já sabes". E Dutronc a sussurrar cá dentro:
"Il est cinq heures, Paris s'eveille"

Ainda não havia metro. De qualquer forma, queria ir a pé, o tempo escoar-se-ia mais rápido. Na rua os homens montavam as bancas. Legumes, queijos, marisco e peixe, em breve a Levis seria um mercado a céu aberto. Muitos cheiros, alguns agradáveis, mas já nem tinha paciência para observar a faina. Estugava o passo. Para quê? Ainda faltavam quase 2 horas. Raio do tempo. Olhei o relógio pela 3a vez nos últimos 5 minutos. A ansiedade ia em crescendo. A ansiedade dá-me cabo dos nervos, pior se carregada de desejo. Decidi ir por baixo. Caminho mais longo, o fazer tempo. Cheguei breve à Clichy, fim de noite para uns, trabalho de corpo, muito. A zona é como um néon enorme e garrido a meio da cidade que acordava quase à pressa
"Les travestis vont se raser
Les stripteaseurs sont rhabillées
Les traversins sont ecrasés
Les amoureux sont fatigués
Il est cinq heures Paris s'éveille"
 

Parei num pequeno café. "Un expresso, s'il vous plait"; "Oui, m'sieu". Má ideia, não era bom, e só serviu para acelerar a ansiedade. Ansiedade! Que tinha um nome: Marília, às 7:00am, na Gare do Nórd. E ainda faltava uma hora e meia. À saída, a abordagem de uma mulher. Olhei-a de relance. Pequena e bonita. Muito pintada. Fiz-lhe que não, e sorri-lhe. A Clichy é comprida. Porque é que não fazia de metro o resto do caminho? Desisti novamente. Melhor assim.
"Le café est dans les tasses
Les cafés nettoient leurs glaces
Et sur le Boulevard Montparnasse
Lá gare n'est plus qu'une carcasse
Il est cinq heures Paris s'eveille"
 Tentava não pensar no objecto da caminhada, mas a cada instante, vinha-me o cheiro da pele dela, o cheiro a lavado de fresco, a uma lavanda muito suave. Como os cabelos, espalhados sobre o meu peito, preguiçosos. Leves.

*****
06:00 am, Rue Saint Lazaire. Ainda faltava quase uma hora...O nosso primeiro encontro, o espanto de a ver desembaraçar-se da roupa, como os outros rapazes. Ficaram as pequenas cuecas, alvas, que após o primeiro e destemido mergulho de cima da fraga, pouco deixavam por revelar, a pequena mancha escura através do translúcido do algodão. O adolescente da cidade, os conceitos. A rapariga sem medos. Sem pudores hipócritas. Sem preconceitos. E olhar que não se me conseguia desviar daquela cara de sorriso aberto. Quase obsceno. E do corpo. Moreno. De onde sobressaiam os peitos incipientes, túrgidos. Uma provação. Saiu lentamente das águas. Parecia uma jovem ninfa. Veio até mim. Sentado num pequeno relvado, pernas flectidas o queixo sobre elas, e os braços de volta. Tentativa de esconder a excitação. Difícil. Parecia-me que ela ia olhar-me nos olhos e descobrir a traição da líbido. Vinha de pele arrepiada e ria. Ria muito. "Não vais?" E eu envergonhado, "A água deve estar gelada". e ela a rir" E está. Mas sabe bem, faz-me sentir coisas estranhas", "Que coisas?" perguntei. E arrependi-me logo. Ela riu outra vez: "Sei lá! Coisas! Coisas cá dentro. Estranhas". Estava estendida de lado, apoiada no cotovelo esquerdo. A mão direita passava-me pelo cabelo caído para a testa. Afago inocente.E o coração acelerava. Nunca a tinha tido tão perto. Os outros continuavam a chapinhar no açude e a gritar uns com os outros. Nem davam por nós. Ali os dois tão chegados, quase íntimos, não fora mal nos conhecermos. E o coração a acelerar cada vez mais. E o coração a acelerar cada vez mais à medida que a Gare Du Nórd se aproximava. "Est-ce que vous avez du feu, s'il vous plait, m'sieu?", "Pardon madame, j'fume pas"' "Ah! merci m'sieu. Pardonnez moi"."Pas du tout"
*****
06:45h, Rue de Dunquerque. E a Gare du Nord já à vista, robusta mais que pesada. Donde estava, já divisava as majestpsas esculturas que lhe encimam a fachada. E o coração quase a saltar pela boca. A ansiedade. A ansiedade que quase não me deixava coordenar os movimentos.Mais umas dezenas de metros ainda, e enfio-me pelo meio da confusão. De vozes e linguas que se confundem e me confundem. Muita gente, tanta gente. Ao pé da máquina de bilhetes mais perto da entrada, dissera ela. Devia ser aquela. Andava de cá para lá, num espaço de poucos metros, não conseguia estar parado.
07:00h am, Gare du Nord. E a espera. Sofrida.
*****

foto de yopi ari yusman

5 comentários:

  1. O francês fica um charme assim, pincelado no meio do texto. Entendo esse encanto pela Marília, pessoas que riem, pessoas sem pudores, encantam.

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  2. Afinal já se percebe a ansiedade pela Marília. Em Paris ou em qualquer outro canto do mundo... Gostei muito do texto, como já vem sendo habitual! :)

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  3. Dizem que Paris tem esse encanto, o de encontrar a falta de ar a cada canto.
    Andei por lá umas quantas vezes e, talvez porque a primeira vez que a vi, ela se me apresentou sem estar arranjada - refiro-me a Paris, foi um desamor até hoje.
    Não digo o mesmo delas, as que me fazem ficar sem respiração. Mas isso... ah, pode ser em qualquer lado, Paris incluído.

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  4. 95 minutos de ansiedade... e um texto lindo. 'E olhar que não se me conseguia desviar daquela cara de sorriso aberto.' :)
    Et oui, le Français fait toute la diférence! ;)

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  5. Obrigado pelos vossos comentários :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!