segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Mário e o Clero

O Mário Latas era duro como a serra onde vivia. O que já quer dizer alguma coisa, se acrescentar que se tratava de um garoto como eu.
O Mário Latas era diferente de todos. Só estava com ele durante os meses da torreira, mas não me via a correr pelos caminhos velhos, sem ele ao lado, descalço como sempre. O pai dele não era tão pobre como a maioria, era latoeiro, mas aquilo era parte da sua personalidade, a rebeldia que ardia dentro ele: mal saía de casa, descalçava as sandálias de tiras que a mãe o obrigava a calçar e deixava-as escondidas num canto do alpendre, e voltava a calçá-las quando regressava.
E assim, corria sobre terras ou seixos, ou silvas espinhosas quando queria apanhar as amoras mais negras e grossas, pés nus que pareciam cascos e me faziam inveja. Nunca consegui ter os pés como os do Mário mas corria com ele. E divertia-me. Como naquele dia em que ele quis apalpar as mamas à Marília e ela lhe deu um estalo nas fuças que ecoou pela serra. E o Mário a fugir-lhe e a rir-se com aquela boca cheia de dentes, parecia um burro. Tão grandes, aqueles dentes.
Quando terminou a 4ª classe, tinha já catorze anos. Não era estúpido, mas, dizia, detestava a D. Vina, a professora. E fugia das aulas. Bem podia o pai dar-lhe sovas.
Depois, e debaixo da sotaina do padrinho, o padre Alves, foi para o seminário. Mas o Mário não era animal de jaula. Nunca soube o que verdadeiramente por lá se passou, ele nunca quis contar em nenhuma das poucas vezes que nos encontrámos desde então, mas foi expulso ao fim de dois anos. E vinha com uma raiva aos padres que nunca lhe conhecera antes - até essa altura eram-lhe mais ou menos indiferentes, para desgosto da mãe, uma católica convicta - tanta, que nem o padrinho lhe escapava à sanha.
Contou-me ele que uma vez deu 100$00 a um rapazote para ir entregar um recado ao padre Alves. Nele escrevera a pedir ao vigário que se deslocasse a casa do Zé Moleiro, que vivia a 5 km, porque o homem estava a morrer e queria receber a extrema-unção. Escondeu-se a uma esquina, e mal viu o homem arrancar na sua Famel, esgueirou-se pela sacristia - por sorte não dera de caras com nenhuma das beatas - e foi pela igreja arrombando as caixas de esmolas. Sabia que deviam estar quase vazias, o padre esvaziava-as quase todas as noites, mas era “Para ele saber como é “, disse-me ele. Detectei nas suas palavras uma animosidade que até então me era desconhecida. Curioso para mim, foi que o vigário nunca conseguiu sacar ao miúdo o nome do mandante do recado.
Anos mais tarde, soube que o Mário tinha sido preso, apanhado a roubar um cruzeiro que havia na estrada a 2 km da povoação, e que não devia ter mais que meia dúzia de moedas.
As nossas vidas divergiram muito, e chegou a altura em que deixei de ver o Mário Latas, o seu riso desavergonhado e os pés descalços. Nunca mais roubámos uvas nem ameixas nos quintais de beira de estrada. Não mais voltei à serra e nem ele nunca me explicou do seu anti-clericalismo quase militante.
Mas provavelmente, algumas notícias dos últimos tempos, poderão ajudar a entender alguma coisa, sabendo contudo, o risco que corro de não estar a ser completamente justo no meu juízo.

11 comentários:

  1. É curioso que todas as minhas colegas de escola que já tinham passado por colégios de padres e freiras passaram a odiar tudo o que dissesse respeito à Igreja, de um modo geral viraram ateias convictas. Imagino que num seminário a revolta possa ser ainda maior... :)

    Não imagino o que seja correr assim de pé descalço pelas terras: até em algumas praias de areia mais grossa tenho dificuldade em caminhar!

    De qualquer forma, desculpando tu melhor a rebeldia desse teu amigo de infância, o Mário fez muito pouco em prol da sua liberdade. Para quem gostava tanto de correr livre, a prisão não é certamente o melhor local para se estar... ;)

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  2. O Mário não soube seguiu por caminhos menos bons o que o levou a ser privado da liberdade que supostamente gostava de sentir sobre os seus pés descalços. É pena alguém tomar estes caminhos.

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    1. Que raio de português o meu o "não soube" está ali a mais.

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  3. Também conheço uns tipos desses. De alguma forma, ajudaram-me a entender determinadas coisas e e, sobretudo, ajudaram-me a perceber o poder e o eco que as escolhas produzem. Mas a minha vida tornou-se mais rica por privar com quem. supostamente, seria "perigoso" privar.

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  4. Muito tocante...faz-nos pensar na história que tantas vezes se repete de pessoas que começam a vida no mesmo local, com as mesmas circunstâncias mas algures pelo caminho há qualquer coisa que traça o seu destino para sempre e as leva para vidas diferentes...*

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  5. Está bom de ver que continuou arruaceiro.

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  6. O Mário Latas parece-me o menos perigoso dos ladrões. :)

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  7. Conheço uma Marilia que é um bocado traumatizada. Estaremos a falar da mesma?

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  8. se este fosse crucificado com o patrão dos padres era aquele que ia para o céu, decerto :)

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  9. Apresentas-nos sempre uns cromos bem jeitosos. Roubar cruzeiros é uma ideia que nunca me ocorreria. Se calhar tenho de pensar mais como o Mário.

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  10. GOSTO MUITO DAS TUAS HISTORIAS E DOS PERSONAGENS QUE CONHECESTE-CONHECES

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!