sábado, 16 de junho de 2012

Violetas

21 de Março. Prelúdio de mais uma Primavera. 
Pela primeira vez em muitos anos, sentou-se só naquele banco de pedra branca do jardim. Sempre o mesmo banco, a hora, a previamente determinada tanto tempo atrás. Sempre aquele dia. 
Olhou as mãos que seguravam o delicado ramo de violetas, compradas na florista com o mesmo carinho de sempre, com o mesmo propósito de todos os anos. E no entanto sabia que desta a destinatária não estaria ali para as receber com aquele sorriso largo de satisfação que lhe subia feliz do fundo da alma e lhe levantava suavemente as comisuras dos lábios, lhe iluminava aqueles olhos escuros e profundos, relampejantes. 
Olhou o céu como que a pedir o milagre que sabia não lhe seria concedido. Voltou a mirar as mãos, desta com mais atenção. Nunca fora muito vaidoso nem se orgulhava especialmente do seu corpo, mas não desgostava delas, eram umas mãos sempre prontas para a carícia fácil, inclinadas à ternura. As veias, quase negras e muito salientes, faziam-lhes sobressair a magreza, de acordo com a do resto do corpo. E reparou especialmente nas pequenas manchas castanhas que as iam juncando, cada dia em maior número, denúncia iniludível que o tempo inexorável lhe deixava, lembrando-o que já lhe sobrava pouco. 
Como lhe pesava cada vez mais a solidão. 
 Recordou com os olhos orvalhados os seus passeios na praia, os dedos de ambos entrelaçados, até que ela se desprendia, descalçava e se aventurava a uma corrida pela estranha renda deixada pela espuma da maré na areia fina, rindo alto, um salto aqui outro ali, sempre vincados com pequenos gritos de satisfação, a voz trinada, que tanta vez lhe povoava os sonhos. A idade nunca lhe retirara a leveza, gostava de tratar de si, vestia sempre roupas finas que lhe frisavam as formas, delgadas mas generosas, e quando corria, o vento encostava-lhe a saia fina e solta às ancas, o que provocava sempre nele um arrepio de incontrolável volúpia, Assistia ao desvario com um sorriso de prazer que lhe perdurava na face muito tempo após. Tudo lhe passava em flashes, a memória não se apagava, não era generosa com ele, obrigava-o a recordar tudo aquilo que queria remeter a um qualquer obscuro escaninho da mente, inacessível, que pudesse para sempre fechar e esquecer sequer da sua existência. 
Levantou-se e uma mão invisível guiou-o ao local onde tantas vezes tinham sido felizes, onde tinham repartido aqueles momentos de alegria inocente, quase juvenil, e que ainda há pouco lhe tomara conta dos pensamentos Sentou-se na rocha, húmida pela maré recentemente vasa, e esticou as pernas enterrando os pés na areia. Sentiu um arrepio subir-lhe e despertar-lhe os instintos, lembrando-lhe que ainda tinha emoções. A areia movia-se, infiltrava-se-lhe nos poros, a sensação era estranha, não sabia se gostava, sabia que durante o dia, no pino do sol, lhe era desagradável. Mas naquela altura, na sua frescura, sentia-a como um tecido, seda, cetim talvez, a fugir-lhe a escorregar-lhe entre os dedos, como a roupa dela nas noites de amor. Tudo lhe trazia a sua presença. Até a Lua com a sua luz misteriosa, porque aparecia às horas que eram as dela. Porque lhe era imprescindível à vida, tal como ela. 
Olhou para o céu, negro profundo de noite, mas iluminado pelo reflexo do astro, e achou estranha relação que com ele estabelecera. A interferência de uma nuvem fugaz interrompia-lhe intermitente a visão, e a escuridão tornava-se mais densa. Sobrava o marulhar das ondas para o recordar onde estava. Apeteceu-lhe mergulhar, rasgar o peito e o coração e afogar-se, dissolver-se naquele mar imenso, convulso. Ou transformar-se numa rocha despida de emoções, isenta dos desejos que permanentemente o torturavam. Mas logo o arrependimento. 
Os seus pensamentos eram a voragem que o consumia sem misericórdia. Tão contraditórios! Achou-se estranhamente masoquista, mas preferia sofrer aquela dor para sempre, a não sentir nada. Era uma dor fina mas ao mesmo tempo sublime a que lhe atravessava a alma. Que lhe doía, mas que já lhe era indispensável à vida, sem ela não se imaginava. Era a dor de sentir a sua ausência, o vazio da sua presença tão desejada mas impossível A lembrança da mulher, tão longínqua, mas sempre tão presente, enviando-lhe um perfume tão intenso lá de longe de onde o olhava com aqueles olhos excessivos, lhe sorria com aquele sorriso de beleza indizível, era uma miragem, um oásis no deserto em que se transformara a sua vida. 
O pensamento, outra vez desobediente, voava para ela. A noite esfriava, tornava-se desagradável, os arrepios sucediam-se mas não se queria ir, evitava ir, sentia os sentidos cada vez mais despertos. Só ali podia estar sozinho com ela. 
Olhou novamente a lua e viu com nitidez a sua face. Ouviu distintamente a voz cantante, o riso puro e cristalino como a água de um ribeiro. Sentiu crescer dentro de si o desejo incontrolável de a sentir junto de si o corpo morno, o hálito cálido e doce. Deitou-se na areia e envolveu-a como se a envolvesse a ela, fundiu-se nela como se fosse o corpo desejado. Estendeu um braço, mergulhou-o na areia como se lhe acariciasse os sedosos cabelos. Fez deslizar a mão abaixo como se lhe percorresse ternamente as ancas perfumadas. Sentiu mais vivo o desejo de a ter só para si, a vontade de, com os lábios húmidos, lhe percorrer o colo, os seios, até a fazer desmaiar de paixão. 
Um espasmo longo percorreu-lhe o corpo. Depois permaneceu inerte. Sentiu a boca salgada. Não soube se era das lágrimas que lhe corriam á desfilada pela face, se era do mar que serenamente o ia abraçando e o levava. 
 Na outra mão, firmemente agarrado, o ramo de violetas que lhe queria oferecer.

(escrevi este texto há muito tempo, e editei-o num sítio, que, pouco tempo depois me arrependi de ter criado e fechei. E fechei de uma forma tão radical, que perdi chaves de acesso e nem apagá-lo posso, pelo que voga por aí na net à deriva, como filho de pai desconhecido. Hoje decidi reeditá-lo, porque penso que devo recordar tanto o que fiz de bem, como de mal)

12 comentários:

  1. Este texto transporta uma tristeza terna e suave que nos deixa um nó na garganta.
    Vic, fez muito bem em reeditá-lo.

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  2. Não entendi o que fizeste de mal neste texto. Eu gostei muito de ler :)

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  3. Tens textos tão bonitos, Vic, alguns muito fortes e/ou tristes, mas muito bons, fizeste bem em partilhar mais este connosco.

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  4. Mal? Não dei por nada.

    Bom sábado

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  5. Achei o texto uma verdadeira delícia. Emotivo, descritivo, sentido.

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  6. (Até me apetece ir plantar um vaso de violetas, depois disto.)

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  7. E por falar de amor... aqui está um texto impregnado dele! Belíssimo, por sinal! Embora triste, evidentemente, quando toca ao envelhecimento solitário!

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  8. Foi das lágrimas. Aliás, é sempre das lágrimas. Quando é assim, é sempre por dentro que se morre primeiro.

    (É um bom texto, Vic. Ainda bem que o trouxeste à superficie.)

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  9. O texto está bom e a mensagem é bela, sem dúvida. Mas eu reeditava-o novamente, perdoa-me a crítica.
    mando-te um email
    ;)

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  10. Este texto mexe demasiado comigo, por demasiadas razões.
    O meu comentário deveria estar em branco, porque fiquei sem palavras.

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  11. Lindíssimo, como lindo é todo o amor...o grande, aquele que só se sente uma vez!
    Há quem diga que não se morre de amor. Eu sei que sim. Morre-se por dentro.

    (sempre quis que me oferecessem um ramo de violetas, as flores preferidas da minha avó e cada vez mais as minhas-julgo que é a 1ª vez que o digo/o sinto. Deve ter sido o teu texto que me evocou estas lembranças.)
    Nina

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  12. Concordo com o comentário do Anónimo. O corpo fica, mas a "alma", essa, acredito que se vá para sempre. Gostei muito. Tão puro, tão prosaico. Vou dar mais atenção ao teu blog. Decididamente!

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!