quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Dias da Cidade

Sento-me à mesa de trabalho. Inclino a cabeça para a memória dos livros que li e amei. Com um gesto de ave pouso a mão sobre o papel. E no interior da sombra da mão, começo a escrever: era uma vez...[Al Berto in O Anjo Mudo]
Lisboa é uma história como qualquer outra, mas começa não se sabe bem onde, dizem que com Ulisses. Poder-se-ia então começar por dizer: Era uma vez um homem chamado Ulisses que, tendo cumprido o que a pátria lhe pedia, deixando Tróia entregue ao seu cavalo de madeira, perdendo-se no caminho de regresso à sua terra, Ítaca, encontrou um local de sol soberbo e luminosidade diferente de todas que conhecia. Decidiu então que, por ser assim tão distinto o local, aí nasceria uma cidade que seria honrada com o seu nome. Aqui, teria cabimento usar com toda a propriedade a original tirada “si non e vero e bene trovato”.
Sem dúvida verdade, é a afirmação acerca da luz diferente da cidade, reflectida nos intrincados desenhos da calçada bordada a branco e negro, ou mais a sul, espelhada pelo debruado do rio, esse manto azul omnipresente, que mesmo nos locais mais afastados nos faz lembrar que existe, ao atirar-nos pelo vento, o seu cheiro.
Em Lisboa, percorro becos, pátios, descidas e subidas, miradouros, cafés debruçados invariavelmente para sul, há tanto tempo que os dias já quase não podem ser contabilizados. Tirei centenas, milhares de fotografias, e nunca consegui tirar duas iguais, porque a cidade muda a cada instante.
Como então recordar a Lisboa de um certo dia? Essa é uma perspectiva que só o turista acidental pode ter, nunca o lisboeta, como eu. Mas esse, o visitante, nunca gozará o prazer de, ao nascer do sol de um dia de outono, propositadamente descer à beira-rio de mãos nos bolsos para as precaver do frio e da humidade que sobe rente às calçadas, tão só à procura dos sons e cheiros do nascer do dia. Não verá, ou notará a não ser por casualidade, o renascer da vida, o recrudescer do bulício da cidade que vai crescendo, à medida que se vão extinguindo de um e outro lado do rio, as luzes que sobram da noite que morre. Não terá oportunidade de se ir apercebendo dos variados odores, tão distintos, que reinam a espaços porque não sabe onde os procurar. Do aroma morno a pão fresco que já quase desapareceu, vitima do progresso que agora nos dá pão com sabor a nada, ao cheiro forte do peixe seco, que habita a rua do Arsenal, ou o aroma guloso das pequenas lojas de café que ainda subsistem na Baixa pombalina.
Por vezes paro no caminho e fico a imaginar como seriam os mercados de rua de outros tempos, em que as especiarias do Oriente eram ansiosamente procuradas. Como ainda recordo uma mão cheia de pregões, os das varinas, do figos para o pequeno almoço, da fava rica, até da língua da sogra, fico a pensar, sem saudosismo contudo, que a vida seria bem mais álacre.
Que forasteiro sonhará hoje, que ainda não há muitos anos, havia na cada vez mais cosmopolita capital, homens a passearem-se com gaiolas na mão a apregoarem pintassilgos e canários? Este desaparecimento de sons e hábitos curiosos, foi um dos custos da civilização, o que me faz muitas vezes condescender com algum conservadorismo que me leva a pensar que preferia que alguns desses pouco “civilizados” hábitos subsistissem, a ver proliferar McDonalds, mais o seu cheiro quase acético.
Por vezes, e estranhamente porque eram quase uma embirração pessoal, dou comigo a sentir a falta das notas metálicas soltas pelos eléctricos a roçar os carris, substituídas, sem vantagem pelo som surdo do tráfego cada vez mais intenso e poluidor.
Mas a cidade não vive só de cheiros e sons. Todos os dias me encontro com um artista. Hoje será com o Pessoa, que se senta pacientemente ao sol, ignorando a desfaçatez do Chiado. Junto-me a ele peço um café de saco que me chega pouco quente, mas nem por isso menos gostoso. Saboreio-o observando as idas e vindas dos incontáveis sem-abrigo que se recolhem nos vãos da Igreja da Encarnação, apelando todos eles à generosidade dos crentes, estes, em muito menor número que os turistas que abordam o templo de máquina fotográfica em riste.
Amanhã encontrar-me-ei porventura com Cassiano Branco, ao passar pelo magnífico Éden, outrora cinema e megastore de uma multinacional de música, hoje, abrigando nos seus fundos, uma suja e confusa Loja do Cidadão. Aliás, a presença do arquitecto é quase uma constante por toda a cidade.
Ou quem sabe, dê uma saltada até às Amoreiras para uma visita à Vieira da Silva e companheiro. Ou mesmo, se o calor não assustar, um passeio pelos jardins da Gulbenkian, a terminar num banco junto ao lago, com um livro aberto, mas pouco concentrado, porque a envolvência distrai. São os namorados que nem dão pelo que se passa à sua volta, tão apaixonados como o casal de melros que brinca na relva. Ou a senhora que adormece a ler o jornal e a quem só os óculos a cair no regaço, despertam.
 
Os dias da cidade são sempre diferentes. Num dia apetece-me subir o elevador de Sta Justa e ver a parte velha agachada ali em baixo. Noutro, subo até á estátua do Adamastor, sento-me a seu lado e olho as docas de longe, mas ali tão perto. Noutro ainda, entro na Basílica, e eu, que nem sou crente, recolho-me no silêncio que abraça quem entra, lugar marcante da cidade, de onde tantos ilustres partiram para o derradeiro e mais sossegado sono.
Falo de olhares que deixo, ou sons que ainda me ecoam nos ouvidos. De aromas. Mas também de sabores. Do pastel de nata tão quente que quase não se consegue comer, altura em que a gula ganha a luta à precaução. Ou o do bolo-rei da Nacional, que nunca encontrou outro que se lhe assemelhe. Ou do sável frito, cortado tão fino que quase se torna transparente, acompanhado por uma incomparável açorda de ovas do mesmo peixe, e que eu agora, acabada esta conversa, vou comer naquele restaurante onde acabei de passar, e cujo cheiro me puxou, irrecusável, a si

5 comentários:

  1. Não conheço Lisboa. As pouca vezes que viseitei, ainda era uma miúda e não me recordo de nada. Mas gostava tanto de poder visitar. De ver esses locais históricos sem ter que levar com a azáfama das grandes cidades.

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  2. Este Verão decidi começara redescobrir Lisboa e devo dizer-lhe que me apaixonei de novo pela cidade.

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  3. Cada cidade tem características fantásticas. Se percorrermos uma durante uma manhã ou uma tarde encontramos ruas fantásticas, pessoas fantásticas. Lisboa não foge à regra.

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  4. Gostava de conhecer muito melhor Lisboa, cada recanto, cada cheiro. De qualquer forma, já fui muito feliz por lá, ou melhor, por aí.

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  5. Melhor coisa de ter arranjado um "mouro" foi ficar a conhecer melhor essa bela cidade que aprendi a amar :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!