Vinham-me ás narinas cheiros mesclados, do tojo, do pó molhado pela ligeira poalha que tinha caído há menos de uma hora, até odores cítricos de um laranjal por colher, mesmo ali ao lado.
Mas era sobretudo o cheiro do seu pescoço, o habitual odor a alfazema de lavado de fresco, que se impregnava em mim quase com a força de um vício.
Tinha uma quase veneração por aquele cheiro. Por aquele e por outros dois, o dela tão característico, de fêmea e o dos dois, do amor acabado de fazer. Sempre pensei que se pudesse guardar aquelas fragrâncias juntas num pequeno frasco, este não mais me abandonaria e seria o aroma perfeito.
Abri os olhos e olhei-a. Estávamos deitados num pequeno relvado que se tinha formado naturalmente por baixo de um salgueiro cujas ramagens densas quase roçavam o chão, mesmo junto ao ribeiro, de que ouvíamos o rumorejar, o saltitar irrequieto de fraga em fraga. Tinhamo-nos ali recolhido do chuvisco e não resistíramos à ocasião. Eu hesitara, mas ela cantou-me Brassens:"Il faut nous aimer sur terre, Il faut nous aimer vivants, Ne crois pas au cimetière, Il faut nous aimer avant, Il faut nous aimer sur terre, Il faut nous aimer vivants. Tu sors pas du monastère, Moi, je sors pas du couvent". A verdade, é que eu estava ansioso por me deixar convencer.
Ela tinha os olhos fechados e estava virada para mim, o braço direito passava-me pelo peito e massajava-me suavemente o lóbulo da orelha, friccionando-o suavemente entre o polegar e o indicador, deixando-me arrepiado. Sentia o morno da sua coxa morena deitada em ãngulo recto sobre as minhas pernas. Não resisti a uma carícia e senti na ponta dos dedos aquela penugem incipiente que lhe emergia da pele fina. Abriu os olhos, aqueles olhos que pareciam sempre espantar-se com o mundo, e sorriu. Nunca a tinha visto sorrir assim. Nunca mais esqueceria aquele sorriso.
- Já sentiste este cheiro, Marília? Não sentes a sua falta em Paris?
- Vou todos os dias a pé de Montmartre até à Madeleine só para sentir o cheiro das flores no ar. Quando posso, vou aos Jardins do Luxembourg. Mas não é a mesma coisa, disse com uma voz quase triste. Vou ser eternamente rústica.
Tinha mudado muito. Pouco ultrapassara a instrução básica, mas era uma auto-didacta e tinha conversas surpreendentes.
- Gostas de poesia? perguntou - Na verdade, na altura era pouco dado a lirismos, estava vocacionado para interesses mais mundanos.- Lá, num café ao pé da casa onde moro, às 2ªs feiras lê-se poesia. É uma coisa fora do vulgar. Sinto-me diferente, livre, quando os ouço.-
- É isso que te dá o sentido de liberdade de que agora dás mostras? Ou é a vida de lá que é menos convencional?
- É tudo isso. Também não conheces a musiquinha do Brassens em que ele conta a história da menina que vai tomar banho à nascente, e à qual o vento atira a roupa para longe, e que então, à vista do homem que a observa, se faz muito envergonhada? Não? Depois acaba assim:"Le jeu dut plaire à l'ingénue, Car, à la fontaine souvent, Ell' s'alla baigner toute nue, En priant Dieu qu'il fit du vent, Qu'il fit du vent..." E riu-se. Com aquele riso descarado e cristalino, inconfundível, que me deixava rendido.
- Sabes? já não és tão desajeitado. Ao princípio eras mesmo principiante nestas coisas.- E voltou a rir-se. Corei, envergonhado.- O mal das pessoas é a hipocrisia com que encaram coisas simples da vida, como o amor e o sexo. Eu nunca o farei, o meu sentido de liberdade como lhe chamas, é assim que se expressa.
- Adoro-te - creio que foi a primeira vez que disse tal coisa a alguém.- Vou-te adorar sempre.
- Avec le temps...avec le temps, va, tout s'en va, on oublie le visage et l'on oublie la voix, le cœur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien. Avec le temps on n'aime plus. É do Ferré. Nunca te esqueças do que ele diz.
Mas eu esqueci. Ou quis esquecer. Nunca quis acreditar que não pudesse haver amores eternos.
É verdade que com o tempo, com a distância cavada entre nós, deixei que aquele sentimento tão forte por Marília se fosse esbatendo. Foi-se transformando num imenso carinho, numa recordação extraordinariamente bela. Ficaram-me episódios, gravados fundo na minha alma, todos ternos, excepto o da partida. Mas desse não vou falar agora.
Agora só falo daquela tarde que acabou em versos ditos de cor, misturados com beijos molhados e ávidos, como ávido era o nosso desejo adolescente, que nos fazia suar, pele com pele, quase violentamente, como se nos quiséssemos fundir um no outro.
Acabou com a roupa amarrotada e suja pelo amor ansioso e, na chegada a casa, com justificações adoidadas para o desatino.
Acabou com o cheiro dela a tomar conta de mim de maneira tão intensa que nessa noite, apesar de não estar nada asseado, disse não ao banho, só para ter o consolo de a ter mais um pouco comigo, de poder assim dormir com ela.
P.S.- Há aromas persistentes. Os daquele dia duraram anos...
Mas era sobretudo o cheiro do seu pescoço, o habitual odor a alfazema de lavado de fresco, que se impregnava em mim quase com a força de um vício.
Tinha uma quase veneração por aquele cheiro. Por aquele e por outros dois, o dela tão característico, de fêmea e o dos dois, do amor acabado de fazer. Sempre pensei que se pudesse guardar aquelas fragrâncias juntas num pequeno frasco, este não mais me abandonaria e seria o aroma perfeito.
Abri os olhos e olhei-a. Estávamos deitados num pequeno relvado que se tinha formado naturalmente por baixo de um salgueiro cujas ramagens densas quase roçavam o chão, mesmo junto ao ribeiro, de que ouvíamos o rumorejar, o saltitar irrequieto de fraga em fraga. Tinhamo-nos ali recolhido do chuvisco e não resistíramos à ocasião. Eu hesitara, mas ela cantou-me Brassens:"Il faut nous aimer sur terre, Il faut nous aimer vivants, Ne crois pas au cimetière, Il faut nous aimer avant, Il faut nous aimer sur terre, Il faut nous aimer vivants. Tu sors pas du monastère, Moi, je sors pas du couvent". A verdade, é que eu estava ansioso por me deixar convencer.
Ela tinha os olhos fechados e estava virada para mim, o braço direito passava-me pelo peito e massajava-me suavemente o lóbulo da orelha, friccionando-o suavemente entre o polegar e o indicador, deixando-me arrepiado. Sentia o morno da sua coxa morena deitada em ãngulo recto sobre as minhas pernas. Não resisti a uma carícia e senti na ponta dos dedos aquela penugem incipiente que lhe emergia da pele fina. Abriu os olhos, aqueles olhos que pareciam sempre espantar-se com o mundo, e sorriu. Nunca a tinha visto sorrir assim. Nunca mais esqueceria aquele sorriso.
- Já sentiste este cheiro, Marília? Não sentes a sua falta em Paris?
- Vou todos os dias a pé de Montmartre até à Madeleine só para sentir o cheiro das flores no ar. Quando posso, vou aos Jardins do Luxembourg. Mas não é a mesma coisa, disse com uma voz quase triste. Vou ser eternamente rústica.
Tinha mudado muito. Pouco ultrapassara a instrução básica, mas era uma auto-didacta e tinha conversas surpreendentes.
- Gostas de poesia? perguntou - Na verdade, na altura era pouco dado a lirismos, estava vocacionado para interesses mais mundanos.- Lá, num café ao pé da casa onde moro, às 2ªs feiras lê-se poesia. É uma coisa fora do vulgar. Sinto-me diferente, livre, quando os ouço.-
- É isso que te dá o sentido de liberdade de que agora dás mostras? Ou é a vida de lá que é menos convencional?
- É tudo isso. Também não conheces a musiquinha do Brassens em que ele conta a história da menina que vai tomar banho à nascente, e à qual o vento atira a roupa para longe, e que então, à vista do homem que a observa, se faz muito envergonhada? Não? Depois acaba assim:"Le jeu dut plaire à l'ingénue, Car, à la fontaine souvent, Ell' s'alla baigner toute nue, En priant Dieu qu'il fit du vent, Qu'il fit du vent..." E riu-se. Com aquele riso descarado e cristalino, inconfundível, que me deixava rendido.
- Sabes? já não és tão desajeitado. Ao princípio eras mesmo principiante nestas coisas.- E voltou a rir-se. Corei, envergonhado.- O mal das pessoas é a hipocrisia com que encaram coisas simples da vida, como o amor e o sexo. Eu nunca o farei, o meu sentido de liberdade como lhe chamas, é assim que se expressa.
- Adoro-te - creio que foi a primeira vez que disse tal coisa a alguém.- Vou-te adorar sempre.
- Avec le temps...avec le temps, va, tout s'en va, on oublie le visage et l'on oublie la voix, le cœur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien. Avec le temps on n'aime plus. É do Ferré. Nunca te esqueças do que ele diz.
Mas eu esqueci. Ou quis esquecer. Nunca quis acreditar que não pudesse haver amores eternos.
É verdade que com o tempo, com a distância cavada entre nós, deixei que aquele sentimento tão forte por Marília se fosse esbatendo. Foi-se transformando num imenso carinho, numa recordação extraordinariamente bela. Ficaram-me episódios, gravados fundo na minha alma, todos ternos, excepto o da partida. Mas desse não vou falar agora.
Agora só falo daquela tarde que acabou em versos ditos de cor, misturados com beijos molhados e ávidos, como ávido era o nosso desejo adolescente, que nos fazia suar, pele com pele, quase violentamente, como se nos quiséssemos fundir um no outro.
Acabou com a roupa amarrotada e suja pelo amor ansioso e, na chegada a casa, com justificações adoidadas para o desatino.
Acabou com o cheiro dela a tomar conta de mim de maneira tão intensa que nessa noite, apesar de não estar nada asseado, disse não ao banho, só para ter o consolo de a ter mais um pouco comigo, de poder assim dormir com ela.
P.S.- Há aromas persistentes. Os daquele dia duraram anos...
O que não nos vale a mente persistir em guardar apenas as coisas boas em detrimento do resto?
ResponderEliminarMuito bom, V. Essa Marília deu-te forte. :)
Já passou, Troll:)
EliminarPerfeito. Acho que há amores que nunca se esquecem, passem os anos que passarem. E eu gosto dessa ideia romântica de eternizar o amor, mesmo o amor que já se foi. Apesar da aversão que tenho à língua francesa, fica perfeita neste teu texto.
ResponderEliminarE dos cheiros guardados num frasco S*? Faz-me lembrar o Perfume do Suskind :)
EliminarBonito texto, que exprime as boa recordações que perduram de pequenos momentos do passado.
ResponderEliminarBrigado, RST :)
EliminarLindo texto.
ResponderEliminarA nostalgia e a evocação de bons tempos faz-nos bem a todos.
Gostei do seu blog. Cá voltarei!!
Também AchoMiguel. Reviver o passado nem sempre é sinónimo de saudosismo :)
EliminarObrigado pela visita
A memória dos afectos também se guarda nos cheiros.
ResponderEliminarGostei muito deste texto e da evocação do Léo Ferré.
:)
É, Apple, os cheiros parecem sobreviver ao tempo :)
EliminarTão bonito que me comovi. Tenho um fraco por encontros amorosos na Natureza. E estou com uma invejazinha saudável da Marília, claro, tão bem retratada.
ResponderEliminarGrazie, Alexandra :)
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