terça-feira, 27 de março de 2012

O Filho

Ontem reencontrei Q. Apesar da idade, continua com o mesmo aspecto robusto de sempre, o olhar directo, franco. Gostei de o rever,
Conheci Q há uns anos quando ocupei um lugar de alguma responsabilidade num sector da empresa em que ambos trabalhávamos. Não sendo um tipo retraído, era, no entanto, reservado em relação à família em relação à qual se referia apenas o indispensável.
Aos poucos, e talvez por ter que falar mais comigo, fui-lhe conhecendo retalhos do passado. Nascera na Beira Alta, numa aldeia cravada nos socalcos da serra e a infância tinha sido passada entre a escola onde aprendeu as letras à pressa e os pastos para onde levava as ovelhas e cabras. Todos os 7 dias da semana, ao nascer do sol, com regresso marcado para o anoitecer. No saco de pano surrado, um pedaço de pão e um naco de toucinho que lhe haveria de dar para o dia todo. Nos pés, um par de socas de madeira, fosse verão ou inverno rigoroso, a neve a cobrir os caminhos velhos por onde levava os animais.
Mais tarde, a tropa, a guerra colonial em Moçambique. Quando partiu, deixou namorada. Grávida. E decidiu não voltar. Nunca me disse porquê, mas pelo que lhe conheço, deve ter havido forte motivo.
Ficou por Moçambique, na Beira, tinha tirado a carta de condução na tropa, tornou-se taxista. Até que alguém que então era influente na empresa para onde muito mais tarde eu viria a entrar, o convidou a mudar de profissão. Largou o táxi para se tornar chefe dos contínuos - todos negros - no novo emprego. Entretanto, casara e tivera 2 filhas.
Quando chegou o 25 de Abril, regressou como tantos outros, mas com divórcio já em andamento. Chegado, conheceu então o filho da ex-namorada. Ao que parece, o comportamento do rapaz desagradou-lhe desde o início, era quesilento, preguiçoso, faltava frequentemente à verdade, e a relação entre eles nunca foi exemplar.
Um parêntesis para referir que Q - e tive que o avaliar profissionalmente algumas vezes, embora já na recta final da sua carreira - me pareceu sempre um tipo correcto, um pouco intolerante em relação a determinados comportamentos, mas afável no trato, extremamente organizado e honesto, e embora fosse pouco flexível em relação a ritmos de trabalho - tinha o seu e dele não se afastava - era trabalhador.
Entretanto, o filho envolveu-se em drogas, e em casa começaram as mentiras, os pequenos furtos, sempre acobertados pela mãe, com quem o rapaz vivia. Ao pai, só aparecia para pedir dinheiro, e Q já sabia para quê. Recusava sempre. Recusava contribuir para a sua destruição. Quando viu que as coisas tinham chegado longe de mais, chegou mesmo a cortar relações com o filho. No entanto, este aparecia esporadicamente até na empresa e sempre com o mesmo fito.
Depois, o filho deixou de dar sinal de vida, mas ele sabia que vivia na rua, que continuava na pequena marginalidade, a drogar-se, e que a própria mãe passava grandes períodos de tempo sem saber dele.
Nos anos 90, altura em que trabalhei com ele e fui sabendo da história, Q quando se referia aos filhos, só mencionava as 2 raparigas, era como se o filho não existisse. Percebi que o assunto lhe era doloroso, e nunca lho referia.
Um dia, recebeu um telefonema e pediu para sair.
Regressou 5 dias depois. Soube então que o telefonema era da polícia, e que lhe solicitavam a presença na morgue a fim de reconhecer um corpo.
Era o filho e morrera 3 dias antes de overdose.
A estranheza dos colegas perante a sua ausência - logo ele, que nunca faltava - levou-o a relatar o episódio, o que tendo em vista a sua habitual reserva em relação à sua vida pessoal, até me espantou um pouco, mas obviamente, não me pronunciei. E ainda me admirei mais com a postura aparentemente serena com que relatou os factos.
No fim, todos ficámos como que sem saber o que dizer. Na verdade, em tais circunstâncias há muito pouco, ou mesmo nada a dizer. Contudo, houve um colega seu - que não primava pela polidez no trato - que se virou para ele e disse:
- Se calhar, foi o melhor para todos. Para ele que já estava condenado. Para ti, que é um problema que te sai das costas
Q encarou-o, e acho que foi a primeira e única vez que o vi com os olhos orvalhados. Respondeu lhe:
-Estás completamente enganado. Não, não foi o melhor, foi o pior. Não percebes? Ele era meu filho.
Até hoje nunca mais me esqueci daquelas palavras e do rosto de Q, que nesses dias parecia ter envelhecido 10 anos. E de cada vez que reencontro Q, recordo-me sempre daquele momento.

6 comentários:

  1. Há momentos verdadeiramente terríveis...

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  2. Não sou muito dada à lagrima rápida, que não sou, mas desde que fui mãe essas histórias tocam-me particularmente. Hoje não sei como seria capaz de sobreviver ao meu filho. Simplesmente não imagino, sequer…

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  3. Acho que apesar de todos os problemas que possam dar e tornar a vida num inferno, sim porque o problema da droga é um flagelo que mata quem consome e destrói uma família, mas um filho é sempre um filho e o natural é os pais partirem primeiro e não os filhos, deve ser uma tristeza que não tem fim.

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  4. Fez-me lembrar uma história bílbica. Quando o rei David perde um dos seus filhos, Absalão, apesar deste o ter traído e querer ocupar o seu lugar como rei de Israel. Não me recordo bem das palavras mas foi algo como "meu querido filho Absalão, quem me dera ter morrido por ti".

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  5. Filho é filho, deve ser um tormento perder um. Mesmo que drogado, criminoso, o que quer que seja. É filho... e não é preciso dizer mais nada!

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  6. Obrigado pelas vossas respostas :)
    Acho que não devo acrescentar mais nada

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!