quinta-feira, 5 de julho de 2012

A 1ª Récita da Associação Beneficente das Trinas

Nas pequenas comunidades há a propensão para se criarem pequenas rivalidades, e aqui a nossa não é excepção. Uma discussão entre o Jacob e o presidente do Vendedores de Jornais (popular agremiação que já forneceu ao país alguns campeões de boxe), levou o 1º a querer formar uma nova agremiação do mesmo género, numa rua paralela, assim do género vila riba, vila bajo.
Aquilo podia ser uma tarefa de Hércules. Mas não para o Jacob que tem mais de meio bairro nas suas mãos: tem uma loja de penhores a qual agora se transformou numa daquelas de compra e venda de ouro e empresta dinheiro a 10% ao mês - muito acessível, portanto -  e freguesia não lhe falta. Obteve da CML autorização para ocupar um prédio devoluto, e tomou a seu cargo umas obras de recuperação, todas feitas à borla por malta que lhe deve dinheiro, o que dá bem ideia de como é o Jacob, e deu-lhe o nome de Associação Beneficente das Trinas. Aquilo demorou quase um ano, mas está do camandro.
Quis fazer a inauguração no 1º dia dos santos populares, e resolveu dar uma récita, a qual propagandeou através de uns panfletos um bocado foleiros, mas principalmente de pressões alcaponianas sobre os seus "clientes" habituais, do género "se não apareces, nunca mais vês "nenhum" a menos de 15% ao mês, e ainda te fico com o cordão de ouro que era da tua bisavó"
Mas aquilo, apesar da experiência do homem em negócios, não correu muito bem. Teve um prejuízo para cima dos 300 € e isso para ele é pior que se lhe arrancassem um dente do siso a sangue frio. Acho que foi o pior que lhe aconteceu desde que a Adozinda lhe estragou o sobretudo de serrubeco negro que o pai lhe tinha deixado e que já tinha servido 3 gerações. 
Aquilo começou logo mal, porque a Elisa como é costume, levou um vestido em lamé vermelho de tal forma apertado que os peitos dela pareciam duas bolas saltitonas do tamanho de melancias a quererem saltar cá para fora, porque além de ser apertado, o vestido, tinha um decote que lhe chegava ao umbigo. E como ficou na 1ª fila, o sr. Jaime, que é o maestro, distraiu-se a subir os degraus do palco, tropeçou e caiu para cima da Idalina, que é uma moça a atirar para o forte e espetou-lhe a batuta no pandeiro, que é o instrumento que ela toca. Pior ficou o Damásio, que é o organista, porque levou com os cento e tal quilos da Idalina em cima, e não ficou capaz de tocar. A bem dizer, o sr. Jaime também não ficou nada bem e teve que ir levar uns pontos no sobrolho ao hospital, porque bateu na borda do bombo. Bem feito, que não tinha nada que andar a deitar o olho ao que não devia. 
Ora este incidente deu como resultado que a pequena banda que o Jacob tinha arranjado, e de que ele diz que é o mecenas – em dias de ensaio, ele fornece bifanas, coiratos e cervejas com 10% de desconto – e que andava a ensaiar há quase 3 meses, se viu privada do maestro, organista e mesmo o pandeiro da Idalina ficou só a 50%, o que constituiu um rude golpe. Ainda se ponderou a hipótese de eles não tocarem, mas o Jacob ficou piurso e disse que não admitia que o seu lucro (como era noite de gala, aproveitou para cobrar entradas e pôr os preços ao nível do Bica do Sapato) fosse por água abaixo e nem sequer queria pensar em devolver a massa das entradas. O Guiomar, que é um velhote que toca violoncelo, disse que sem as indicações do maestro era difícil, mas o Jacob disse-lhe para tocar de ouvido. Ora o Guiomar é um bocado surdo, e ainda por cima, cada vez que tocam juntos, mete uns algodões nos ouvidos, porque diz que o trombone do Alfredo, que toca mesmo atrás dele, lhe faz dores de cabeça (mas eu acho que isso é por causa das porradas que a vara do trombone lhe dá de vez em quando na cabeça, e não por causa da música, embora se diga que o Alfredo também não é nenhum portento). Portanto, já devem estar a imaginar o salsifré que aquilo deu. Era cada um a tocar (?) para seu lado, e até o cão do Jacob que estava muito sossegado atrás do balcão, fugiu a ganir. 
Bem, mas isto não foi o pior. Isso foi mesmo quando o Afonso subiu ao palco para cantar o fado. Era a primeira vez que ele cantava desde que regressara dumas férias numa ilha das Caraíbas de cuja não vou especificar o nome, que lhe tinham saído numa rifa da mercearia do Alecrim, e que não tinham sido nada do que ele tinha imaginado. É que o se o hotel era mais mixuruca que uma pensão do Intendente, a praia, que nos postais era uma maravilha tropical, quando ele lá chegou constatou que os seus clientes mais numerosos eram os tubarões. O pior foi que ele só deu por isso depois de se atirar ao mar. A Arminda, que é a mulher, bem lhe gritou que lhe parecia ter visto uma barbatana suspeita, mas ele já ia em pleno voo a mergulhar e um tubarão ferrou-lhe logo o dente, embora de fugida, porque ele ainda se conseguiu pirar e não teve danos de maior. Pelo menos as marcas não são muito visíveis embora um bocado embaraçosas. Quer dizer, quem olhe para ele ninguém diz que sofreu um ataque de tubarão. Só se dá por isso quando ele abre a boca para cantar e desde a noite da récita, a alcunha dele é o “Farinelli das Trinas”, ele que antes era conhecido como o Rouxinol da Madragoa. Oxalá que ele não descubra que fui eu que lha pus. De qualquer forma, ele também não sabe quem foi o Farinelli. 
Claro que aquilo foi a machadada final no espectáculo, e o Jacob nem teve coragem para impedir as pessoas de sair. A Elisa (que já foi multada pela Câmara por partir os globos dos candeeiros da rua, quando se punha à janela a cantar) ainda se ofereceu para substituir o Afonso, mas aí é que foi a debandada geral, até o Jacob correu a guardar os copos que ele diz que são de cristal, mas que eu sei que ele comprou num armazém de venda de vidros por grosso. 
Claro que para mim que já contava com qualquer coisa do género, aquilo até foi uma noite para recordar, mesmo tendo-me ficado cara, com entradas que não comi, mas que o Jacob fez questão de cobrar - disse que é assim nos restaurantes finos - , coiratos e uma mine. Ainda por cima, quando abri a janela para o fresco da noite entrar, lá estava Vidal e a mulher a divertirem-se, que nem uns malucos (porque mesmo lá longe bem ouvia a algazarra), ela deitada de costas na cama (só lhe conseguia ver os pés), e ele em cima do psiché todo nú, só com uma echarpe à Alfredo Marceneiro e a cantar a Mariquinhas. 
Portanto, está-se mesmo a ver que a noite não foi má para toda a gente!

4 comentários:

  1. Que filme... e essa cena final, nem quero ficar com essa imagem que ainda traumatizo.

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  2. Continuo a gostar muito da tua rua... :)

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  3. Ahahahah li isto ontem à noite mas guardei o comentário para hoje, que o post merece várias leituras. Tanta e tão boa história que aqui nos contas, Vic :) e imagens, imagens que conseguimos imaginar tão bem e que se nos gravam na mente (mesmo quando não deviam, credo) :))

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  4. Ahahah, que texto delicioso e hilariante! Fartei-me de rir, que é coisa de que todos andamos precisados... :)))

    Há noites assim, que na altura nos parecem correr muito mal, mas vendo bem as coisas a frio, até dão para umas boas gargalhadas! :D

    Há "canos" não ouvia/lia a palavra piurso! :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!