quarta-feira, 4 de julho de 2012

A Vida é Uma Rua Estreita




O percurso era sempre o mesmo mas todos os dias se ia renovando, porque era início de Primavera, aquela época em que, a cada momento a Natureza se renova, em que a cada instante nasce nova folha verde no grande castanheiro bravo que, à entrada do jardim, abre a sua copa oferecendo a generosidade da sua sombra. Logo pela manhã, mal adentrava o perímetro arborizado sentia o abraço fresco daquele imenso verde, que ainda respingava as últimas gotas do orvalho da madrugada.
Depois de respirar fundo aquele ar, ia até à mesa do costume bem junto ao pequeno lago e pousava o livro e o pequeno caderno onde tomava ocasionais notas e bebia o café fumegante e cheiroso, enquanto o olhar se perdia.

Foi numa dessas deambulações do olhar que dei pelo homem. Nada o distinguia dos outros que numa mesa atrás de si jogavam às cartas, mas qualquer coisa me alertou para a diferença. Já o tinha notado mais vezes, mas daquela ative-me a olhar com mais atenção. Os da mesa, reformados como ele, jogavam uma sueca murmurada, sussurro só quebrado por uma demonstração mais ruidosa de alegria por uma vitória conquistada à força da matreirice de velho. Ele, abandonava-se no banco, os olhos pequenos, quase fendas, e gozava o sol com um esboço de sorriso no rosto marcado pelos sulcos profundos que a vida lhe deixara. Era sempre assim, isolado dos outros, as emoções pareciam não lhe conseguir nunca perturbar as feições quase severas.
Nesse dia decidi-me a meter conversa. Paguei a bica, caminhei devagar e fui-me sentar junto dele.
Antes que pudesse dizer alguma coisa inquiriu-me:
- Que livro anda a ler?
- Um livro de viagens, do Jack London.
Respondeu-me que não conhecia, que a literatura dele, depois de uma 4ª classe tirada à pressa, passava por uma olhada rápida aos jornais diários, e pelas obras de escritores portugueses. - Gosto do Torga, especialmente. Uma escrita quase animal, como eu. E do Eça de Queiroz. Muito actual, o Eça, não lhe parece? As Farpas dele podiam ter sido escritas agora. Também gosto do Eugénio de Andrade.
Fiquei surpreendido por gostar de poesia, mas não me manifestei. Perguntou-me então o que tanto escrevia no caderno.
- Pequenas ideias que me surgem, e de que ocasionalmente depois me sirvo para desenvolver e escrever qualquer coisa mais trabalhada. Por vezes também tento a poesia. Se tenho inspiração, o que é raro. Por vezes, é um pensamento que me parece bom, mas depois acho-o desinteressante, não lhe consigo dar continuidade.
- É como a vida, não é? Muitas vezes parece interessante, mas às tantas, vai-se estreitando, estreitando, até quase nos tirar o ar. Há dias em que não descobrimos o porquê dar-lhe continuidade, tal o vazio que se sente. Abrimos as mãos e verificamos que estão cheias de nada.
Não sabia que lhe responder e fez-se um silêncio entre nós.
- Mas esse livro deve ser interessante. Gosto de viagens, embora a maior parte das que fiz tivessem sido muito curtas. Sou reformado da carris – e sorriu. Era guarda-freio, nos eléctricos. Conheci cada canto da cidade. Muita gente também. Se você guarda pensamentos, também deve guardar recordações, e aí, talvez eu lhe pudesse contar algumas. Quem sabe não encontraria alguma interessante.
Disse-lhe que sim, que a sua postura me despertara a curiosidade e respondeu-me que era igual aos que jogavam atrás de nós, que os conhecia, que gostava deles, mas que não apreciava jogos e que estava bem assim, acompanhado mas a uma distância considerável.
- Nasci num pátio, na Domingos Sequeira, em Campo de Ourique. Só vivia lá gente pobre vinda da província, miserável em busca de melhor vida, mas na maior parte dos casos, melhor fora que por lá tivesse ficado. As paredes ressumiam humidades, a luz era dos mal cheirosos candeeiros a petróleo, o comer escasso, e à noite, embrulhava a cabeça nos cobertores grosseiros para não sentir na cara as baratas que voavam em direcção ás luzes e cujo contacto me deixava enojado. A promiscuidade era tanta que conhecíamos envergonhadamente as intimidades uns dos outros.

Depois de uma adolescência paupérrima, acabei por ir parar à Carris. Com uma cunha, claro. Parecia um emprego estável, ordenado ao fim do mês e reforma garantida. E assim foi. Marcas más, como as greves do fim dos anos 60 durante as quais ainda fui preso, muitos dias a trabalhar 16 horas sem ganhar mais um tostão, muitas noites com um sono indescritível, mas a ser obrigado a pegar naquele volante gelado e abalar, percorrendo as tortuosas ruas da Graça, até largar aqui no largo da Estrela, no frio da madrugada. Depois, chegar a casa, despir-me à pressa e procurar o calor tépido do corpo da mulher, mas já sem vontade para mais nada que não fosse dormir e, se possível, só acordar daí a 2 ou 3 dias. Mas antes de adormecer, ainda lhe sentia o suspiro de desalento. Eu sabia que a decepcionava e sentia-o dolorosamente. Mas não tinha forças para mais nada. E ela compreendia. Compreendeu sempre.
Folgava aos domingos, quando folgava, e o meu entretêm era vir de manhã até aqui ao jardim ver a banda da GNR tocar, e à tarde, deixar os miúdos na casa da minha sogra, pegar na mulher e ir a um cinema de reprise, à sessão da tarde. Muitas vezes, a caminho do cinema, voltávamos atrás e gozávamos a cama, como não o tínhamos feito durante a semana. Era o dia mais feliz da semana. Esquecia tudo o resto, só existia aquele momento.

Tive percalços. Uma vez galguei a calçada do Combro com o eléctrico desembestado, sem travões. Um terror, imaginar que alguém podia ser colhido. Felizmente era um sábado à tarde, só trazia um passageiro e havia pouco movimento. Consegui guinar aquele monstro contra uma parede, e ficámos mal tratados, umas escoriações feias, eu e o passageiro, mas nada de mais, que eu gritei-lhe para ele se agarrar bem, e ele, apesar do pânico, obedeceu.
Outra vez, foi um miúdo que vinha à pendura no estribo e caiu. Ficou mal, os miúdos são inconscientes, próprio da idade, claro. Andei uma semana cheio de pesadelos. O miúdo aparecia-me no sono, estendido no chão, imóvel, com o sangue a escorrer pelo ouvido. Péssima recordação.

E conheci pessoas. Algumas interessantes, encostavam-se à grade a meu lado e contavam-me episódios bizarros da sua vida. Tive alguma intimidade com dois ou três, mas sou pouco expansivo. Uma delas era a Júlia. Era manicura e puta. Quando me tocava o turno da noite, apanhava-a sempre aqui no largo, e deixava-a no Arco do Cego, onde ia à procura dos clientes habituais. Vida dura, a dela. Tinha um filho pequeno do namorado que tinha sido mobilizado para Angola e lá tinha morrido, e o que ganhava como manicura mal dava para pagar as papas do menino. História como muitas outras, mas eu sempre gostei da Júlia, era carinhosa, humana. Mesmo nos dias de frio intenso vinha para ao pé de mim e contava-me como tinha sido o dia, das clientes exigentes e chatas, ou das simpáticas que lhe davam uma gorjeta mais generosa. A presença dela aquecia-me a noite. Reformou-se com 60 anos. Com a conta bancária exactamente com a mesma quantia que tinha quando se vira obrigada a aventurar-se nos meandros da noite. O filho era médico e nem lhe falava, tinha vergonha dela, mas ela, dizia, entendia. "Não me importo, sabe? Não fica bem a um médico ter uma mãe puta". Conheceu-me dezenas de anos e nunca me tratou por tu. Curioso, não? Eu era mais velho e também me reformei pela mesma altura. Tive portanto com ela, uma vida paralela sem contudo nos termos nunca encontrado fora da plataforma do eléctrico.
Podia agora contar-lhe muito mais, tudo, mas seria maçador.

Perguntei-lhe pela mulher e pelos filhos. Uma sombra atravessou-lhe o olhar, turvou-lho de uma maneira estranha.
- A minha mulher morreu há dois anos. Foi a partir de então que comecei a vir para o jardim passar os dias. A solidão dói-me muito, e basta-me a noite, em que estendo os braços e só tenho o vazio para abraçar.
Os filhos...têm a vida deles, estão bem, gostam de mim. Mas sou um incómodo, preocupo-os. Um velho a caminho dos oitenta só dá chatices. Mas ao menos sou independente, trato de mim, tenho a minha reforma. Visitam-me uma vez por mês, por obrigação. Um mês um, no outro mês outro. Mas gostam de mim. Passam o tempo a repeti-lo, como se se quisessem convencer disso eles próprios.

- Portanto, está a ver, é como lhe dizia, olha-se para trás, revê-se uma vida e ela é uma rua estreita, como tantas que percorri com aquele volante de aço nas mãos, e que desemboca numa mão aberta e cheia de nada. Com esta idade, nem sonhos.
Só me restam recordações, muitas mais que as que lhe contei, mas hoje estou cansado, é a bronquite que herdei dos milhares de cigarros fumados entre uma viagem e outra, e este banco onde me sento e donde vejo partir os poucos eléctricos que ainda restam na minha cidade.

Era tarde, esperavam-me para o almoço. Despedi-me e deu-me um aperto de mão que me surpreendeu pelo vigor, num homem daquela idade.
-Até amanhã. Falamos mais?
-Quem sabe?


(2007)

7 comentários:

  1. Os electricos da minha zona.....que eu tanto uso :))
    Adoro historias de vida, das que sao contadas em 1ªmão...

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  2. Um excelente texto, muito interessante.

    O meu abraço de parabéns.

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  3. A história de uma vida, tão boa de "ouvir" que queremos continuar a ler...bom texto :)

    Beijinho :)

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  4. Mais um texto espectacular, adorei :)

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  5. Também a mim me fazem sorrir estas narrativas.:)
    Nina

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  6. Muito bom, Vic! E também comovente... uma história de vidas que se cruzam, mas não se encontram. Ou só aos domingos, numa matiné de reprise...

    Continuação de boas férias, boas leituras e... bons textos! :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!