E foi numa delas, que ao tentar conciliar o sono teimoso que não chegava, ao ouvir a voz rouca do locutor de uma rádio qualquer, anunciar uma entrevista a um padre há muitos anos radicado a Oriente, que te convoquei a ti, que há tanto tempo e para tão longe te afastaste.
Reconheci-te logo a voz, apesar de não teres mais de 14 ou 15 anos na última vez que falaste comigo e nunca mais te ter ouvido, ou sequer sabido de ti. Mas o timbre arranhado, talvez mesmo um pouco estridente, era inconfundível. Depois, mencionou-te o nome. Mas nem precisava. Soube sempre que o teu sonho era seres franciscano por essas paragens, que na altura, na tua fé e no teu entendimento de garoto, pensavas serem habitados por povos a necessitarem ajuda e evangelização.
Curiosamente, nesse aspecto sempre fomos completamente divergentes, tu, cheio de fé, quase beato, e eu, desprendido de qualquer pensamento religioso, por vezes até adverso a essas coisas, talvez fruto da influência de um pai extremamente anti-clerical.
No resto, éramos garotos vulgares, percorríamos as ruas do bairro em correria até chegarmos ao jardim, e era aí que passávamos as tardes em brincadeiras iguais às de tantos outros miúdos, em jogos onde a competição acesa, normal naquelas idades, estava sempre presente.
Lembro-me até daquelas competições menos ortodoxas, dos concursos com a urina, a tentar ver quem conseguia atingir mais longe com o jacto, ou dos desenhos feitos com ela nas paredes do primeiro prédio que aparecia mal nos vinha a vontade de urinar. Ou o dos cuspos, com truques aprendidos com os mais velhos, em que se impulsionava a saliva com a língua a servir de catapulta e se cuspia entre dentes.
E ainda hoje me arrepio ao passar nas arcadas do velho jardim e constato da nossa inconsciência ao saltarmos delas abaixo, alheios ao perigo que a altura do salto representava para a nossa integridade, só para provarmos que não éramos medrosos. Como estremeço ao lembrar-me das subidas da rua das Amoreiras na pendura do eléctrico, indiferentes à ameaça do trinca-bilhetes porque sabíamos que éramos mais rápidos que ele, ou dos jogos de futebol clandestinos, com a consequente perseguição policial assegurada.
Mas recordo também os momentos calmos, as tardes de estudo conjuntas, a troca de selos, porque foram eles, talvez, o nosso primeiro interesse mais adulto, embora em estado muito incipiente.
Evoco esses tempos e sorrio. Convoco-te para eles, porque foste tu que comigo os partilhaste muitos desses momentos.
Olho para a ampulheta, inexorável, e sei que a areia só tem aquele trajecto descendente, que não há reversão, e que a parte de cima se vai esvaziando a um ritmo cada vez mais acelerado, como se o estreito canal por onde vai escorrendo, se fosse alargando.
Sei que nunca mais nos veremos, e que o último marco, foi aquele abraço de despedida que demos, muitos anos atrás
Em silêncio, quase religiosamente, penso em ti, e interrogo-me se também tu, alguma vez me convocarás para as tuas recordações
É verdade, neste mundo os encontros e desencontros sucedem-se e um dia somos surpreendidos com essas recordações do passado, despoletadas sabe-se lá como ou porquê... :)
ResponderEliminarGostei muito!