terça-feira, 11 de setembro de 2012

Pequenos Crimes Entre Amigos

José era ateu e crente, aparente contradição.
Ateu por herança paterna e educação, convicção firmada na vivência, na constatação das injustiças e sofrimentos de vidas alheias.
Crente no amor e na sua dimensão divina. Regido desde sempre por essa crença, foi-se deixando embalar pelas palavras corridas que cantavam o amor, alongava a noite embrenhado na prosa e na poesia, lia tudo e amava mais ou queria amar. Sonhava com o amor eterno, aquele que, segundo ele e os poetas que lia, vai crescendo dia a dia, e a que nem a morte física pode estancar, mesmo não crendo ele na vida para além dela.
No auge dos seus delírios, conheceu aquela que, para si, seria a idealizada deusa, quase miragem, e que lhe preencheria todos os sonhos.
Não a vou descrever fisicamente. Era bela, sim. De riso alacre, tao leve que ao andar parecia flutuar um palmo acima do chão, assim ele a via. O impacto do primeiro olhar foi fulminante. Amor à primeira vista.
E ela pareceu de certo modo corresponder. Por pequenos gestos, olhar convidativo, o sorriso de lábio inferior ligeiramente fremente. De tal forma que ele se sentiu compelido a abandonar a sua timidez e abordá-la. Nessa noite, admirou-se ele com o seu inesperado atrevimento e ao assentimento dela.
Assim nasceu aquela que, para ele, na sua natural ingenuidade, seria a história de amor da sua vida. Mas a curiosidade que a tinha a ela guiado até ele foi-se esgotando. Da sua parte, o amor não era um sentimento perene. Papéis invertidos e para ela, pequeno e colorido colibri, ele era a flor no qual ela foi saciando as suas fomes. Ora, as flores têm vida efémera e os colibris, é sabido, saltam sem pecado para o girassol seguinte.
No caso, ele nunca soube quem seria o girassol seguinte. Não lhe interessava. Era o que menos interessava. Só o rasgão profundo nos sonhos de felicidade comum, a machadada vibrante em tudo aquilo em que sempre acreditara, na eternidade do sentimento supremo.
No meio do vendaval de dores, em vez de o confortar, disse-lhe o amigo a quem suspirara a sua fatalidade que “tudo passa, e o amor só é eterno enquanto dura”.
Foi uma crueldade escusada. Não era naquilo que ele cria. Não era aquilo que ele queria ou necessitava naquela altura.
Deixou ir amarfanhando a alma, até que ela não era mais que um pequeno novelo negro que não reconhecia já como parte de si.
O José morreu ontem. Sem poesia. Vítima da sua ingénua credulidade. Também de pequenos crimes perpetrados por quem lhe estava mais próximo: ela que lhe cravara o estilete da indiferença bem fundo e direito ao ventrículo. O amigo, que em breves palavras cortara cerce todas os sonhos que ainda lhe sobravam sobre o que era o amor, e lhe dissera, sem dizer, que tudo não passava de ilusão.
O José morreu ontem. Ateu e descrente.

7 comentários:

  1. Mais um belo texto, Vic. Gostei muito

    Agora, o amor pode ser tramado, sim... e as mulheres também...
    Ahahahahah! desculpa, não resisti ;)

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  2. tudo passa, e o amor só é eterno enquanto dura...
    De uma descrente...

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  3. Oh que tristeza...De qualquer maneira eu continuo crente até ver...

    Beijinho*

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  4. É um lindo texto, forte e inspirador. Mas assentado numa rapidez nada burocrática na velocidade dos trâmites do êxtase amoroso à dor ressentida...Uma peça amorosa em vários atos, resumida "brutalmente" para 15 minutos.

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  5. Mas alguém ainda morre de amor?! Mas gostei da estória! :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!