sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Pequeno Conto Sobre Umas Mãos

Foi a primeira característica que lhe notou.
Não foram os olhos de água, rasgados, de longos cílios negros. Nem o cabelo de fogo, que ao sol parecia uma seara em chamas e que lhe emoldurava o rosto perfeitamente oval onde pontificava uma boca carnuda eeternamente húmida que parecia sempre ávida de beijos. Ou o nariz direito de narinas frementes.
Sequer o corpo esbelto de formas firmes, os seios jovens e erectos, ou as ancas modeladas sobre umas pernas longas, ou os pés pequenos e perfeitos que pareciam não tocar no chão quando se movia. Nem o eterno cheiro quase narcótico a violetas frescas que dela se despreendia
Não. Foram as mãos, longuíssimas e estranhamente estreitas. Com dedos longuíssimos e estranhamente estreitos. Muita vez teve a tentação de lhe fazer notar a característica mas hesitava sempre e acabava por recuar nas intenções.
Amou-a desde logo com um amor desbargado, sem limites, uma adoração, quase um pecado. Todos os dias era consumido pelas labaredas altas de uma paixão descontrolada.
Uma vez, sorrindo-lhe com aquele sorriso que só ela tinha, pediu-lhe que fechasse os olhos. Ele obedeceu, e então sentiu a suavidade daquelas mãos longas e estreitas a percorrerem-lhe o cabelo, sentia-as nas têmporas, na nuca, depois descerem-lhe ao pescoço, sentia-as a desabotoar-lhe a camisa e depois a descerem-lhe do peito ao ventre. Ãté atingir o clímax de uma maneira quase sobrenatural, que o fez sentir-se como se perdesse o pé, como se tivesse atingido outra dimensão.
A partir daí, bastava ela articular uma palavra que ele instintivamente fechava os olhos e sentia aqueles dedos longos a explorarem-lhe cada nesga do corpo, num extâse prazer inimaginado.
Estranhou quando ela uma vez lhe telefonou. Como que hipnotizado, mal soou aquela voz do outro lado do fio, cerrou as pálpebras. De imediato sentiu as mãos. As mãos exploravam-no, acariciavam até se lhe fincarem nas costas quase se enterrando nelas, e ele sentiu então que elas o puxavam firmemente para a frente como se ela ali estivesse e o atraísse a si e depois fizessem amor como era habitual.
Aquela ausência presente e preenchida passou a ser uma constante, tal como o seu prazer.
Até que um dia ela lhe cravou um estilete, fino, longuíssimo como os seus dedos bem no meio do peito, até ficar a um mílimetro do coração. Dada a espessura mínima da lâmina, a ferida, era estreita, feita de modo a que quase não sangrasse. O sangue ia escorrendo, gota a gota, cuidadosamente, dimensão meticulosamente definida, de modo a que se mantivesse vivo.
E assim foi ficando, dia após dia, vivendo e morrendo, até que soou o telefone. Mal ouviu aquela voz fechou de imediato os olhos como estava ensinado a fazer. Foi quando sentiu o cheiro das violetas e aquelas mãos estreitíssimas a insinuarem-se-lhe pela pequena chaga aberta até atingirem o órgão vital, que apertaram lentamente provocando-lhe uma dor excruciante.
Depois, todos os dias o sádico ritual se repetia e ele, não conseguia reagir, sempre morrendo e vivendo mais um pouco.
Agora, já sabia porque tinha ela aquelas mãos longuíssimas e estranhamente estreitas

8 comentários:

  1. Que conto tão trágico e belo ao mesmo tempo, que saudades destes magníficos textos.

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  2. Von Ribbentropp, Ghandi e Olivério Kramer juntos nunca escreveriam esta obra modificada certamente da coletânea do Marquês de Sade , ramo de Portugal (primo distante, é verdade). Em todo caso loas para este autor, que precisa ainda ser descoberto como o Brasil em 1500 - mas por favor sem ingleses por perto nem Napoleões.

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  3. Dramático e emocionante.
    Muito bom Vic :)

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  4. Um conto um bocado estranho... mas bem escrito, como sempre! :)

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  5. Arrepiante!
    De toque erótico (que muito aprecio) para o terror calmo.
    Os homens apaixonados podem ser um brinquedo nas mãos das amadas.
    E pensar que há tantas mulheres que desconhecem esse poder.

    Gosto da tua escrita. Brilhante.

    Um beijinho

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  6. Também achei muito bem escrito...mas também achei estranho, belo, arrepiante e dramático...

    Beijinho :)

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  7. Adorei o texto, Vic!
    As mulheres... as mulheres são tramadas... ;)

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  8. A descrição das mãos e dos dedos ficou-me na retinha. Gosto das tuas micro-ficções. :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!