sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Lembro-me

Lembro-me de, pelas manhãs, passear pelo bosque por entre carvalhos e salgueiros debruçados sobre o ribeiro, que cantava de fraga em fraga como os rouxinóis de papo amarelo e as cotovias.
Lembro-me bem daquele frio cortante a subir pela espinha quando os pés se desencaminhavam da terra, e entravam distraídos pela agua que os cobria de espuma e fazia estalar os ossos, como castanhas deitadas sobre brasas.
Lembro-me do cheiro a azeite quente, açúcar e canela que vinha da cozinha quando fazíamos os coscorões.
Lembro-me de me deitar na rede ao fundo do jardim, e adormecer na sombra do caramanchão formado pelas copas duas cerejeiras que se uniam, com o livro no colo, e embalado pela brisa que trazia consigo o aroma dos limoeiros e o cheiro forte da terra húmida do acabar da rega.
Lembro-me da professora Leonor, da sua voz fina de menina, tão diferente do som das palmatoadas que ela aplicava diligentemente nas mãos de quem não sabia a tabuada dos 7 ou gaguejava na leitura da lição diária.
Também me lembro de me sentar na cadeira de baloiço no alpendre, e observar o sol a mergulhar lentamente no horizonte deixando o céu incendiado, da cor dos tições que o meu avô remexia melancolicamente na lareira nas noites de Inverno, geladas pelo vento que a serra ali em frente, nos soprava pelas frinchas de portas e janelas.
 
 
Tal como me lembro da mesa farta da véspera de Natal, dos enchidos e dos queijos, das filhós, do arroz doce e da aletria, do cheiro dos grandes pães de centeio ainda quentes e estaladiços acabados de cozer no grande forno que o meu avô tinha erguido nos fundos do quintal, mesmo ao lado do palheiro, onde os animais procuravam aquecer-se, encostando-se uns aos outros, soltando, por vezes balidos tão fundos que pareciam saídos das entranhas da terra.
Lembro-me ainda, dos cânticos da missa do Galo na igreja, e das velhas de negro que pelo meio deles se esganiçavam, perseverando diligentemente para se fazerem ouvir e agradar ao jovem padre, de bochechas lustrosas e acerejadas, que sorria distraído, como se a solenidade da cerimonia lhe fosse indiferente.
Lembro-me como se fosse hoje de, camuflado pela escuridão da lua nova, observar o vulto do jovem padre cozido nas sombras, introduzir-se como um ladrão na casa da viúva rica da aldeia, beata e quarentona, que, de olhar lânguido lha entreabria a porta tão cautelosamente, que o grosso batente em forma de mão não se movia um milímetro, e nem do trinco metálico se soltava qualquer som.
Lembro-me pois, de muitas coisas desse breve tempo já quase tão longínquo como o meu nascimento - de que, curiosamente, já não me recordo - e, por vezes, espanto-me com as tantas coisas que ainda permanecem vivas dentro de mim. Tantas coisas que a minha memória ainda acolhe e que não sei para que me servem a não ser para, de vez em quando me lembrar, que um dia fui um garoto igual àqueles dois que vejo agora aqui da minha janela correrem felizes atrás um do outro soltando risadas incontidas e nervosas.
E é por isso que me lembro que nessa altura, me parecia tudo mais simples e colorido, mais alegre.

7 comentários:

  1. Agora é que fiquei deprimida de vez, Vic! Então já andas a sonhar com coscorões? Eu ainda estou em modo sandália e esplanada... Se bem que outro dia a mistura de açúcar e canela com que polvilham as farturas me fez lembrar os doces de Natal das minhas avós.

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  2. Deprimi! Pronto...
    Fizeste saltar toda a minha nostalgia... que saudades dos meus tempos de criança!
    Só tenho pena se não conseguir trazer as mesmas recordações que tenho, aos meus filhos um dia...
    Gostava que eles ainda dessem valor a coisas que parece que só nós é que damos :\

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  3. Gostei do texto nostálgico, mas depreendo que me enganei: julgava-te um alfacinha de gema. Dito isto, todos nós temos recordações de um passado distante (não tão distante como o dia do nascimento, claro! :) ), em que tudo parecia muito mais simples, feliz e colorido. Faz parte de ser criança, e esses "recuerdos" também a mantêm viva dentro de nós... :)

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    1. Sou um alfacinha de gema, Tété. :) O que não quer dizer que só tenha recordações lisboetas

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  4. Tens bonitas memórias, daquelas que quando reunidas dão textos assim, profundos, melancólicos e inocentes. Bonito. :)

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  5. Lembro-me de não pensar na vida, ser inconsciente e sem noção do tempo não me lembrar do prazo de validade da vida.
    Lembro-me se ser feliz com tão pouco...
    Deixaste-me nostálgica.
    O tempo pode ser mestre, porém impiedoso. Saber dele tira cor à vida.

    Beijinho e bom fim de semana.

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  6. E são memórias fantásticas. São essas que nos alimentam a alma.

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!