quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A Partida

Apesar de muitos dos momentos na sua companhia perdurarem na minha memória após todos estes anos, a mais nítida, talvez porque a derradeira, e também a mais impressionante, é a do seu corpo magro, ascético, estendido no caixão rude, primitivo, apoiado em dois bancos, um na cabeceira e outro aos pés, no meio da sala praticamente vazia.
A ciganita vestira-o como ele gostaria: a camisa de flanela grossa e característica, que ele usava abotoada no pescoço com dois botões mesmo naquelas tardes em que o sol lambia o alpendre com a força de uma espada de fogo, a calça de cotim azul desbotado e os pés descalços, que de tão magros, quase permitiam um completo estudo anatómico dos ossos. Se a sua presença era por natureza imponente, não pela envergadura do porte, mas pela dimensão da sua personalidade que parecia saltar-lhe de sob a pele e pelo magnetismo estranho que emanava, ali, naquele estranhíssimo féretro, tornava-se esmagador. As suas histórias eram sempre histórias de mar, de mar calmo em noites em que ele só lhe ouvia o rugir manso e surdo e as pequenas vagas a beijarem-lhe o barco, ou noites de mar furioso, em que ele não sabia se era a chuva que caía inclemente no mar, se era o mar que subia ao céu para se misturar com ele, e que parecia ir-lhe rachar o pequeno batel ao meio e desfazê-lo depois em mil pedaços. E o vento e a água a vergastarem-lhe as faces, a marcar-lhas como os chicotes que tinham vergastado Cristo.  Eram histórias de grandes pescarias, de noites em que os peixes  pareciam saltar-lhe voluntários para o batel, ou noites magras, em que o pescado só lhe daria para sobreviver durante dia ou dia e meio, o que o faria voltar novamente àquela faina cruel.
O velho era respeitado na vila próxima, embora verdadeiramente ninguém o conhecesse. Talvez por saber desse respeito da comunidade por ele, o padre, um homem relativamente novo e simpático a condizer, foi lá a casa e comunicou-me da sua disponibilidade de deixar fazer o velório na capela junto ao farol e de lhe dar um “enterro cristão”, graça que eu agradeci, mas respondi-lhe que seria mais conveniente pôr a questão à ciganita, a pessoa mais próxima do velho. “Eu limito-me a fazer-lhe companhia de vez em quando, partilhando-lhe a solidão e as histórias. Ela é que tratava dele. Conhece-lhe a vida e a alma”.
O homem foi contrariado, via-se que não gostava daquela rapariga arisca à qual  raramente ouvira uma palavra, que estava sentada numa cadeira baixa junto á janela que dava para o alpendre, o olhar fixo, o rosto sem demonstrar qualquer emoção. Previa, e bem, que a resposta seria um rotundo “Não”, que ecoou seco pela sala segundos depois. Ela conhecia-lhe bem o anti-clericalismo quase primário, e sabia que nem morto ele quereria entrar num sítio do qual sempre se afastara enquanto vivo.
A rapariga, na verdade, era muito mais mulher que rapariga, mas o hábito fazia-me sempre pensar nela como a rapariguita, que eu conhecera um dia, pequena, nervosa, muito morena - facto que enraizara no modo como o velho a tratava, sem menosprezo, antes com um acento de carinho que ela reconhecia - que aparecia mal havia luz e só se ia silenciosamente quando lhe acabava de fazer a sopa do jantar, depois de passar a maior parte do dia enroscada no degrau do alpendre no canto oposto ao meu, aspirando golfadas de ar salgado trazido pelo vento que soprava do mar, e ouvindo-lhe as pequenas histórias ou apreciando-lhe os longos silêncios. De vez em quando sorria, um sorriso pouco mais que esboço, mas suficiente para deixar ver uma fileira de dentes brancos, onde se destacava um par de caninos encavalitados, que lhe davam um aspecto ferino.
Não sei quando nem como tinham travado conhecimento, ou sequer que espécie de laço os unia. A origem da ligação entre os dois era anterior ao meu aparecimento e entre nós os três havia uma espécie de acordo tácito, mudo, de não fazer perguntas. Eles entendiam-se bem só com os olhares, e eu fazia o possível. Mas por vezes sentia-me uma espécie de passageiro intruso num compartimento ocupada por dois cúmplices, dois amantes platónicos.
O resto do dia, após a saída cabisbaixa do clérigo, foi ainda mais sombria, não pela bem-intencionada mas desastrada intervenção do homem, mas porque se aproximava a hora, o pôr do sol, de o levarem para onde ficaria, deixando-nos aos dois como se fôssemos órfãos.
A rapariga, que raramente se me dirigia, nessa noite despediu-se com um “Até amanhã” surpreendente, sem lágrimas mas com uma tristeza tão densa que quase tinha forma. Surpreendente porque imaginava que com a partida inusitada do velho, também ela se iria.
Mas enganava-me. Ela voltaria durante muito tempo, como se não quisesse de repente quebrar a rotina que lhe enchera a vida durante anos, e, tal como eu, parecesse preferir a presença de fantasmas.

14 comentários:

  1. Texto bonito e triste...

    Beijinho :)

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  2. Dos melhores textos que te li. Pena que a Ficções tenha acabado, era um bom espaço para o publicares. De alto nível mesmo.

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    1. Não é um estilo que se adapte muito bem aqui, Rapariga, como aliás podes ver, Noutro blog, talvez. E poderia escrever todos os dias, Mas aqui... um de quando em quando :) Ainda bem que gostaste :)

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    2. Sim, é um estilo que deixa pouca margem ao feedback. :) Vou ficar à espera de mais. :))

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    3. Não é só o feed-back. É mesmo a leitura, Rapariga :)

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    4. Eu sei isso, ler é uma forma de dar esse retorno. É fácil de ver quando o que se escreve não é lido. :)

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  3. Eu ainda não te conheço bastante,Vic, só que o plural de pão é pães rs rs; mas devo te dizer que este texto tem a grandiosidade dos mestres mais famosos e louvados. Forte, altamente descritivo, apaixonado e humano, a gente sente o ambiente e os personagens. Parabéns.

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  4. Bonito Vic, muito bonito.
    Triste mas tão bonito...

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  5. Bonito texto, Vic! Fez-me lembrar vagamente "O Homem e o Mar", de um grande escritor... :)

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!