Ao fim da tarde, na ressaca da canícula que tudo torra e faz parecer que o alcatrão se evola no ar, sentado na esplanada com o mar por vizinho silencioso, a Bohemia fresca assume uma textura diferente pousada na mesa que humedece com aquela transpiração gelada, e chama-me a si com um olhar de quase amante.
À minha frente, desfilam os grupos, também eles dourados do sol, mas o que verdadeiramente me prende a atenção são os casais. Nesta altura, parecem mais namorados que nunca. Reparo num, especialmente carinhoso, que por acaso é constituído por dois rapazes e lembro-me do Cristóvão, que se ali estivesse havia de atirar uns quantos remoques ao par, de preferência de modo a que eles ouvissem. Nunca conheci ninguém tão homofóbico como ele, nem quem defendesse o seu preconceito com argumentos tão débeis quantos os dele.
Com efeito, o meu companheiro de imperiais e caracóis costuma dizer que não entende:
”Como é que é possível um gajo não gostar de gajas, quando elas são a coisa mais tentadora que o criador pôs no mundo?”.
E eu até seria tentado a subscrever a sentença, não fora o caso de ele viver há uns anos amancebado com a Peida-Gadocha, que além dos quilos a mais que a alcunha denuncia, é a mulher com menos atributos que eu conheci até hoje.
Conheço algumas a atirar para o...digamos, robusto, mas que até se sabem tornar sensuais. Ela não, e nem se esforça nem um pouco por isso.
“Isso é o que tu dizes. Não a conheces como eu”.
Lá nisso tem razão, e nem tenho qualquer intenção. Por ele, por ela e, principalmente por mim.
”Há encantos escondidos, que nem sequer imaginas, meu rapaz”.
Realmente, é-me muito difícil imaginar, e se o que ele diz é verdade, os tais encantos devem ter sido bem escondidos por algum especialista da linha de protecção às testemunhas dos EUA.
"Só me custa um bocado quando ela se espalha pela cama com uma das pernas por cima de mim e adormece. Deixa-me ali que só consigo mexer os olhos e nem levantar-me consigo".
Pois. Aliás, só a perspectiva da Peida-Gadocha nua, quanto a mim é suficiente para não deixar levantar um homem, seja de que forma for.
Para mim, permanece um mistério, o facto de, sofrendo o Cristóvão de um acentuado prognatismo que lhe valeu a alcunha de “bulldog da Picheleira” (ele nasceu por detrás da Alameda) e a Peida-Gadocha ser como é, terem tido um par de gémeos muito giros.
O Cristóvão é taxidermista nas horas vagas, mas apesar de alguma crueldade que é inerente a alguém com um hobby destes, é boa pessoa, apesar de ser um poço de contradições. De vez em quando lá vem com umas lições de moral, coisas do género do Éxupery como a tal de: ”O que é precioso é, muitas vezes, invisível ao nosso olhar”.
Esse é outra dos hábitos dele, ter tiradas grandiloquentes, evocar Pessoa ou Yates, mas eu sei perfeitamente que o seu verdadeiro farol era o José Vilhena. Saía um livro do “mestre” (é assim que ele lhe chama), e era ele o primeiro a comprá-lo. Nada de censurável, claro, que eu também aprecio o Vilhena.
A nossa última conversa, na ressaca do Europeu de Futebol, que por acaso foi quase um monólogo, dá uma ideia de como funciona o Cristóvão, e como é um fulano cheio de contradições.
- Consegui converter a Mina (é o petit-nom que ele dá à sua matrona que se chama Guilhermina) ao futebol.
- Foi? Não imaginava ninguém que menos gostasse de qualquer desporto.
- Pois é. Mas gosta demais da brincadeira, percebes? E eu tenho andado muito em baixo. Como sabia que a Selecção não jogava todos os dias e não tenho o Helder Postiga em grande conta, disse-lhe, à laia de jura de aficionado, que só afogávamos o ganso de cada vez que ele marcasse um golo. Enfim, foi uma aposta arriscada e se no 1º jogo ainda me safei, contra a Dinamarca, o gajo enganou-se, marcou. Caiu-me tudo. Nem calculas a satisfação dela. A partir daí, colou-se à televisão de cada vez que havia jogo. Meia hora antes, lá estava ela com a cerveja e o pacote de amendoins .
Confesso que só de imaginar a Peida-Gadocha de mini na mão e a enfardar amendoins me deu vontade de rir, mas fiz um esforço para não dar estrilho, porque vi que o caso era sério para o meu amigo.
- Enfim, passei uns dias a rezar como nunca tinha feito desde a minha comunhão solene em Alcoentre. Felizmente que as Ilhas Faroe não se qualificaram. Já imaginaste o que seria de mim se o gajo faz um hat-trick?
Ahahah, os amigos de quem falas aqui são todos um bocado estranhos! Este Cristóvão parece outro cromo, como o Marcelino, mas noutra onda... :)
ResponderEliminarE vai-te contar as suas intimidades com a matrona? Credo! :P
Mas o texto está genial, fartei-me de rir! :D
Meu, "e se o que ele diz é verdade, os tais encantos devem ter sido bem escondidos por algum especialista da linha de protecção às testemunhas dos EUA". Pow. MATOU-ME! Juro. Não sou nada dada a essas merdas feministas, mas costumo espevitar quando falam mal da minha raça, mas juro que adorava conhecer a PG para tentar descobrir os atributos que o Cristovão parece ter encontrado.
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