segunda-feira, 14 de maio de 2012

Estória Exemplar, ou de Como um Esquecimento pode ser Fatal

A vida do Horácio tinha sido vivida em função das trapalhadas e partidas que sempre armara, e que, quase sempre irritavam seriamente, mesmo as pessoas que com ele mais privavam e gostavam dele. Porque apesar de tudo era um tipo cativante. 
Era tão recorrente o apelo das partidas, que nas 36 horas que demorou o seu velório, a mulher passou-as em sobressalto e ao mesmo tempo na esperança de o ver levantar-se do caixão e “ressuscitar” à frente de todos. Em vão. 
Um dia, tinha ele 3 anos, desviara inadvertidamente a cadeira ao pai, homem pesado de mais de 90 quilos, que se espalhou estrepitosamente pelo chão, com os presentes a soltarem sonoras gargalhadas. Provavelmente, terá sido esse episódio a traçar-lhe o destino. 
Na escola, começara por ir às lancheiras dos outros meninos e subrepticiamente juntara pequenas e quase imperceptíveis mas picantes malaguetas aos almoços dos pobres. O espectáculo não foi bonito, as crianças em lágrimas, as encarregadas em alvoroço a tentarem falar para as urgências hospitalares, as suspeitas de uma intoxicação alimentar provocada sabe-se lá por quê, e por fim a escola metida num processo de averiguações à sua salubridade. A um canto, o velhaco torcia-se de gozo. 
Episódios desses sucediam-se com regularidade: ora era um professor a quem serrara pacientemente uma das pernas da cadeira, que sentia a dureza do chão, ora era o incauto transeunte que passando sob a sua janela levava um banho de água suja. Mas dessas, foram aos milhares. 
Certa vez, a vítima foi uma velha tia, propensa à gulodice, seduzida por um belo chocolate, previamente embalado em chamativa prata e invólucro, que afinal não passava de um potente laxante. Os dias seguintes foram passados em aflitivas corridas para a casa de banho, uma desidratação geral, e a família consternada. Suspeitas, nenhumas. 
Com efeito, passou muito tempo antes que se soubesse que o autor de tantas patifarias era o Horácio, que lá dissimulado era ele. Mas tal como o serial killer que prossegue a sua senda de crimes deixando sempre uma qualquer pista para que se saiba que foi ele o autor de mais um – o crime exige propaganda - também o danado começou a sentir necessidade de ser reconhecido, até porque no seu íntimo, se considerava um génio na sua especialidade. Assim, começou a deixar pequenos indícios e a partir daí, muita coisa começou a fazer sentido, para a família e para os amigos, quase todos eles vítimas, uma e outra vez, das suas proezas. Mas como no caso do rapaz e do lobo, raramente estas coisas tem o fim feliz que o artista principal desejaria. No caso, o Horácio sempre quis que algo de memorável marcasse a sua vida. 
A última, magicada há tanto tempo, seria a sua coroa de glória. Encenaria a sua morte, com um ataque cardíaco fulminante durante a noite. Preparara tudo com meticulosidade, fizera o que o seu médico e cúmplice aconselhara, e a aparência de morte era total. Escrevera os seus desejos finais e deixara bem vincada a vontade de que ninguém se aproximasse durante o velório. (que teria lugar em sua casa e não na igreja), bem elaborada estratégia para que ninguém desse pelo embuste. Até a inconsolável viúva se via constrangida a chorá-lo de longe. E que vontade de o abraçar ela tinha. Afinal, e apesar de tudo amava-o. Tudo tinha sido preparado ao pormenor, e foi assim que se viu sozinho durante umas horas durante a noite, mais uma exigência escrita, e foi nesse lapso de tempo que cautelosamente se levantou do ataúde e se dirigiu a um pequeno armário que lhe servia de arrumação para as ferramentas, donde surripiou um martelo de orelhas com o qual abriria o caixão precisamente na altura em que este aterrasse sete palmos abaixo do chão, e antes que a terra começasse a ser lançada e o cobrisse, e de onde saltaria com grande espectáculo. A surpresa seria geral, e ele antecipava já os desmaios, as comoções, mas principalmente o seu gozo, o ataque de riso que o sacudiria face ao terramoto de emoções por si causado. 
No dia escolhido, tudo preparado para o ultimo show, seguiu ansioso na carrinha funerária, e ainda mais quando na pequena capela do cemitério ouviu a missa de corpo presente e os elogios fúnebres de familiares e amigos. Já todos lhe tinham perdoado as façanhas, ninguém as lembrou naquela ocasião o que o deixou surpreendentemente aborrecido. Tanto pior! Em breve se vingaria, e daquela não se iriam nunca esquecer. Já tinha o martelo bem a jeito, usá-lo-ia como pé-de-cabra, e cada vez estava mais nervoso. Tanto que de repente se começou a apoderar dele um estranho calor, cada vez mais intenso e insuportável. 
*****
 Esquecera-se o Horácio de um pormenor. Uns tempos antes, aconselhado pelo amigo médico, fizera uma inofensiva operação à vesícula. Aproveitara para arquitectar mais uma das suas façanhas. A sua amante esposa era uma católica militante, roçando até o beato. Disse-lhe o Horácio então, de modo sério, como se se tratasse de algo transcendente, que nestas coisas nunca se sabia, podia acontecer qualquer coisa, que podia não acordar da anestesia, sabendo ele que a intervenção, a laser, só requeria anestesia local. Portanto, decidira deixar por escrito que se alguma fatalidade lhe acontecesse, queria ser cremado. 
A mulher caiu em prantos, assim não o poderia visitar no cemitério, chorá-lo convenientemente e lhe deixar preito do seu amor, como todas as outras viúvas, alegou. Mas ele manteve-se irredutível, sabia que a operação era trivial, mas queria uma pequena vingança pela comida insossa que ela lhe servira durante todos aqueles anos. 
O alívio dela veio quando o viu sair impávido da sala de operações, sorridente até. 
 E esquecido. Porque nunca mais se lembrou da carta que deixara com aquela vontade expressa. Que tinha intenção de rasgar, quando do regresso ao lar. 
Em contrapartida a mulher, nunca mais a esqueceu, e fez questão de fazer tudo conforme os desejos do seu amado marido.

12 comentários:

  1. Ooops :)

    Assim se vê que, mesmo com um bom planeamento, aparece sempre algum pormenor com potencial para lixar o esquema todo ;)

    ResponderEliminar
  2. É a história do Pedro e do Lobo... tanto brincou, tanto brincou, que um dia se queimou... literalmente.

    ResponderEliminar
  3. Bolas, que macabro :(
    O desgraçado foi queimado vivo...

    ResponderEliminar
  4. Enquanto miúdo, fez-me lembrar o Tom Sawyer;
    Já como adulto fez-me lembrar um grande parvo...*

    ResponderEliminar
  5. Também recordei a história do Pedro e do Lobo.
    Uma fantástica narrativa, apesar do drama.
    beijinhos:)

    ResponderEliminar
  6. Que história tão tétrica! Bem contada, mas tétrica! Agora pergunto eu: quem gosta de um crápula desses, sempre a fazer brincadeiras de maus gosto e ainda se achar um génio por cima? :P

    ResponderEliminar
  7. Eu diria, que algumas pessoas concorrem decisivamente para o fim que têm :)
    Bem hajam pela participação

    ResponderEliminar
  8. Acabou a provar o seu próprio veneno :DDD

    ResponderEliminar
  9. Que horror, que história macabra...pobre Horácio, merecia uma lição, mas não esta :(

    Gostei de ler, apesar do fim...

    :)

    ResponderEliminar

Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!