Nunca vim a saber se Moscovo é uma cidade bela, porque a beleza das cidades só existe reflectida nos olhos dos seus habitantes, e os moscovitas olham insistentemente para o chão, como se procurassem uma terra inútil perdida debaixo dos pés.
Não há nada mais triste que os velhos que, com a cabeça metida entre os ombros e os olhos colados ao asfalto, não esperam absolutamente nada, a não ser que um espírito caritativo lhes compre alguma das mil e uma ninharias expostas em cima de lenços, de toalhas de banho e de mesa ou de sobras do enxoval nupcial. Muitos deles usam medalhas nas lapelas, e a minha tradutora ajuda-me a identificar esses restos de iconografia de um país que sucumbiu sem pena nem glória: o velho que, apesar do calor que faz, não larga o sobretudo, é um herói do trabalho; o outro, que de vez em quando leva à boca uma garrafa embrulhada em papel de jornal, é herói da União Soviética. Os dois velhos, entre chávenas de duvidosa porcelana, colheres e livros cujos títulos não compreendo, oferecem dúzias de objectos da parafernália comunista.
Aproximamo-nos de uma velhota, não sei porquê, talvez atraídos pela beleza da rapariga que sorri de uma fotografia a preto e branco. Ela dá por isso e, com as mãos grossas que me parecem ser de camponesa, cobertas de veias e de manchas, oferece-nos o retrato com moldura de madeira.
É uma bela rapariga. Posa de pé em cima da asa de um avião, veste um casaco de cabedal apertado por um cinturão militar, e o vento parado na fotografia, joga com o lenço que tem ao pescoço e com a cabeleira que talvez fosse loura.
Ao pé dela vê-se também outra rapariga, um pouco cheia de carnes dentro do seu fato-macaco de mecânico. Debaixo da fotografia há diversas assinaturas para mim ilegíveis e selos descorados com a foice e o martelo. A minha tradutora troca umas palavras com a velhota, que aponta com dedos trementes para a gordinha da fotografia e sorri.
As duas continuam a falar, não percebo nem uma palavra, suponho que regateiam o preço, até que Ludmila lhe entrega todo o dinheiro que traz consigo e se afasta mordendo os lábios.
No seu apartamento, enquanto bebemos um chá, Ludmila abre um livro sobre a 2ª Guerra Mundial e conta-me a história daquela fotografia.
A bela rapariga do avião chamava-se Lilia Vladimirovna Litvak e era piloto de combate. Nasceu em Moscovo num dia de Agosto de 1921. Aos 20 anos teve o seu baptismo de fogo no céu de Estalinegrado e, com outras 5 raparigas pilotos da Divisão 286 do Exército Vermelho, formou um esquadrão chamado “As Rosas Brancas de Estalinegrado”, voando nos seus velozes Yakolevs-1, enfrentam os alemães e transformaram-se em muito pouco tempo no pesadelo da Luftwaffe. Uma rosa branca pintada sobre a estrelinha vermelha identificava o avião de Lilia, chefe do grupo, que entre Setembro de 42 e Agosto de 43 derrubou 12 aparelhos do inimigo nazi. A tenente Lilia Vladimirovna Litviak tinha 22 anos quando descolou para cumprir a sua missão número 168, e nunca mais regressou
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A gordinha do fato-macaco de mecânico chama-se Inna Pasportnikova. A sua missão na guerra foi manter preparados os Yakolevs das “Rosas Brancas de Estalinegrado”, e é a única sobrevivente de todas aquelas valentes mulheres, sim, sobrevivente, porque aquela velhota que entrou com a sua quota de sacrifício e deu os melhores anos da sua juventude à luta contra a besta parda, sobrevive com uma pensão que não chega a 3 euros e meio, menos de 4 dólares, e vende as suas recordações numa rua de Moscovo.
Velozes automóveis percorrem as avenidas moscovitas. Os vidros escuros não deixam ver os passageiros. Homens elegantes saem dos bancos com guarda-costas ao lado. No restaurante Dimitri, oferecem um “menu executivo” de 300 dólares, incluindo champagne. Inna Pasportnikova olha insistentemente para o chão. Quero crer que tem ainda um sonho, só um: ver aterrar o Yakolev da sua camarada Lilia Vladimirovna, prepará-lo e depois, descolar com ela para cumprir a última missão das “Rosas Brancas de Estalinegrado”.
(Luís Sepúlveda, in As Rosas de Atacama)
Sou um admirador de Sepulveda. Do escritor que corre o mundo e descreve de forma exemplar o que vê, ao que assiste. Umas vezes de forma mais leve, outras mais sofrida, mas sempre profundamente humana.
Luís é um lutador, um resistente, um homem profundamente culto e conhecedor do mundo que o rodeia, sobretudo preocupado e atento ao seu companheiro, o homem que ele considera, mais que tudo, irmão. Sepulveda, filho de uma pátria estraçalhada pela besta militar, é um homem de convicções que luta com as palavras para que todos os seus irmãos sejam livres, não olhando a condição ou nacionalidade.
Hoje, quando vemos a Grécia, berço da nossa civilização estilhaçar-se em lutas internas e se desmorona face às ameaças externas à sua soberania financeira, quando a Espanha e a Itália estremecem e o nosso País se curva perante as exigências descomunais dos grandes patrões da economia e reduz uma classe média inteira à condição de novos pobres. Hoje, quando vemos uma Alemanha, derrotada de duas guerras mundiais por si provocadas, e que agora pretende ganhar uma terceira, sem desperdício de vidas e balas alemãs, à custa de quem, na 2ª metade do século XX, a ajudou a reerguer, decidi deixar aqui esta sua crónica publicada há uns anos, porque hoje mais que nunca me pareceu a propósito.
Como diz Sepúlveda, “Não há nada mais triste que os velhos, com a cabeça metida entre os ombros e os olhos colados ao asfalto”
Fenomenal a "visão" do mundo que o Sepúlveda nos traz. Sempre mt sensível.
ResponderEliminarE esses velhos a olhar para o chão,podemos ser todos nós, os do lado "errado" de uma Europa (e Mundo) em tempos de crise. E isso é desolador.
É mesmo, Mesmica. Por isso destaquei essa frase. Um dia destes, damos por nós a reparar que são os nossos velhos, e não só, a não levantar os olhos do asfalto.
EliminarVic, magnífico texto e tudo o que se está a passar por essa Europa está aqui descrito, ainda por cima acabei de ler o último livro do Sepúlveda continuo deslumbrada com as suas histórias.
ResponderEliminarUns dos meus preferidos do Sepulveda, Rainha, O último dele, já comprei mas ainda não li. Vai a seguir :)
EliminarNunca li nada do Sepúlveda, confesso. Esta amostra faz-me pensar que já é mais do que tempo de alterar isso.
ResponderEliminarObrigado, vic.
Sim, acho que não deves perder tempo, Troll. Quer nas crónicas, quer nos romances, como O Velho que lia romances de amor, são de leitura imprescindível.
EliminarEnquanto lia, pensava que era tu a descrever uma viagempor terras russas e imaginei todo o cenário. Que fluidez de texto.
ResponderEliminarTenho para mim, que olhar para o chão é sinónimo de tristeza.
Olhar para o horizonte, para as copas das árvores, para o alto dos prédios, enfim olhar para cima indicia uma pessoa feliz, de bem consigo, pronta para sonhar e se elevar. Não têm idade estes olhares comprometedores
Lindo, o excerto que partilhaste.
Obrigada!
Para não fazer essa confusão, pus o texto em itálico, Pérola.
EliminarÉ realmente muito bonito, o texto do Sepulveda. Não se devem perder a leitura dos seus livros de crónicas, nem os romances, todos excelentes
Nunca li nada deste autor, mas ao ler este bocadinho fiquei com vontade :)
ResponderEliminarBonito e triste este excerto :(
:)
*porque é que os comentários aqui ficam cheios de erros?
Engraçado, ficam com erros antes de eu comentar, depois quando publico já não há erros, nem no meu, nem no dos outros comentadores...estranho.
ResponderEliminar:)
Maria, aconselho mesmo a ler tudo o que é de Sepulveda :)
EliminarQuanto aos erros, não sei realmente se se passa alguma coisa estranha. Não dei por nada :). Mas pelos vistos, corrige-se.
também sou fã de sepúlvedra!! grandes histórias, muito bem contadas!
ResponderEliminarAbsolutamente fantástico! Mas sou suspeita, que adoro Sepúlveda, embora este livro ainda não tenha lido.
ResponderEliminarE sim, infelizmente esta história também me pareceu vir muito a propósito da Europa de hoje...
Nunca li nada dele, está na altura de ler. Gostei.
ResponderEliminarNo seguimento do teu desabafo solidário com os que estão a sofrer a guerra financeira, gostaria de deixar uma frase de outro tão grande como o Sepúlveda:
ResponderEliminar"A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos.” Mia Couto
Infelizmente, assenta que nem uma luva!