quinta-feira, 17 de maio de 2012

Panfleto


Nunca vim a saber se Moscovo é uma cidade bela, porque a beleza das cidades só existe reflectida nos olhos dos seus habitantes, e os moscovitas olham insistentemente para o chão, como se procurassem uma terra inútil perdida debaixo dos pés. 
Não há nada mais triste que os velhos que, com a cabeça metida entre os ombros e os olhos colados ao asfalto, não esperam absolutamente nada, a não ser que um espírito caritativo lhes compre alguma das mil e uma ninharias expostas em cima de lenços, de toalhas de banho e de mesa ou de sobras do enxoval nupcial. Muitos deles usam medalhas nas lapelas, e a minha tradutora ajuda-me a identificar esses restos de iconografia de um país que sucumbiu sem pena nem glória: o velho que, apesar do calor que faz, não larga o sobretudo, é um herói do trabalho; o outro, que de vez em quando leva à boca uma garrafa embrulhada em papel de jornal, é herói da União Soviética. Os dois velhos, entre chávenas de duvidosa porcelana, colheres e livros cujos títulos não compreendo, oferecem dúzias de objectos da parafernália comunista. 
Aproximamo-nos de uma velhota, não sei porquê, talvez atraídos pela beleza da rapariga que sorri de uma fotografia a preto e branco. Ela dá por isso e, com as mãos grossas que me parecem ser de camponesa, cobertas de veias e de manchas, oferece-nos o retrato com moldura de madeira. É uma bela rapariga. Posa de pé em cima da asa de um avião, veste um casaco de cabedal apertado por um cinturão militar, e o vento parado na fotografia, joga com o lenço que tem ao pescoço e com a cabeleira que talvez fosse loura. Ao pé dela vê-se também outra rapariga, um pouco cheia de carnes dentro do seu fato-macaco de mecânico. Debaixo da fotografia há diversas assinaturas para mim ilegíveis e selos descorados com a foice e o martelo. A minha tradutora troca umas palavras com a velhota, que aponta com dedos trementes para a gordinha da fotografia e sorri. As duas continuam a falar, não percebo nem uma palavra, suponho que regateiam o preço, até que Ludmila lhe entrega todo o dinheiro que traz consigo e se afasta mordendo os lábios. 
No seu apartamento, enquanto bebemos um chá, Ludmila abre um livro sobre a 2ª Guerra Mundial e conta-me a história daquela fotografia. A bela rapariga do avião chamava-se Lilia Vladimirovna Litvak e era piloto de combate. Nasceu em Moscovo num dia de Agosto de 1921. Aos 20 anos teve o seu baptismo de fogo no céu de Estalinegrado e, com outras 5 raparigas pilotos da Divisão 286 do Exército Vermelho, formou um esquadrão chamado “As Rosas Brancas de Estalinegrado”, voando nos seus velozes Yakolevs-1, enfrentam os alemães e transformaram-se em muito pouco tempo no pesadelo da Luftwaffe. Uma rosa branca pintada sobre a estrelinha vermelha identificava o avião de Lilia, chefe do grupo, que entre Setembro de 42 e Agosto de 43 derrubou 12 aparelhos do inimigo nazi. A tenente Lilia Vladimirovna Litviak tinha 22 anos quando descolou para cumprir a sua missão número 168, e nunca mais regressou
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A gordinha do fato-macaco de mecânico chama-se Inna Pasportnikova. A sua missão na guerra foi manter preparados os Yakolevs das “Rosas Brancas de Estalinegrado”, e é a única sobrevivente de todas aquelas valentes mulheres, sim, sobrevivente, porque aquela velhota que entrou com a sua quota de sacrifício e deu os melhores anos da sua juventude à luta contra a besta parda, sobrevive com uma pensão que não chega a 3 euros e meio, menos de 4 dólares, e vende as suas recordações numa rua de Moscovo. 
Velozes automóveis percorrem as avenidas moscovitas. Os vidros escuros não deixam ver os passageiros. Homens elegantes saem dos bancos com guarda-costas ao lado. No restaurante Dimitri, oferecem um “menu executivo” de 300 dólares, incluindo champagne. Inna Pasportnikova olha insistentemente para o chão. Quero crer que tem ainda um sonho, só um: ver aterrar o Yakolev da sua camarada Lilia Vladimirovna, prepará-lo e depois, descolar com ela para cumprir a última missão das “Rosas Brancas de Estalinegrado”. 

(Luís Sepúlveda, in As Rosas de Atacama)
 
Sou um admirador de Sepulveda. Do escritor que corre o mundo e descreve de forma exemplar o que vê, ao que assiste. Umas vezes de forma mais leve, outras mais sofrida, mas sempre profundamente humana.
Luís é um lutador, um resistente, um homem profundamente culto e conhecedor do mundo que o rodeia, sobretudo preocupado e atento ao seu companheiro, o homem que ele considera, mais que tudo, irmão. Sepulveda, filho de uma pátria estraçalhada pela besta militar, é um homem de convicções que luta com as palavras para que todos os seus irmãos sejam livres, não olhando a condição ou nacionalidade.
Hoje, quando vemos a Grécia, berço da nossa civilização estilhaçar-se em lutas internas e se desmorona face às ameaças externas à sua soberania financeira, quando a Espanha e a Itália estremecem e o nosso País se curva perante as exigências descomunais dos grandes patrões da economia e reduz uma classe média inteira à condição de novos pobres. Hoje, quando vemos uma Alemanha, derrotada de duas guerras mundiais por si provocadas, e que agora pretende ganhar uma terceira, sem desperdício de vidas e balas alemãs, à custa de quem, na 2ª metade do século XX, a ajudou a reerguer, decidi deixar aqui esta  sua crónica publicada há uns anos, porque hoje mais que nunca me pareceu a propósito.
Como diz Sepúlveda, “Não há nada mais triste que os velhos, com a cabeça metida entre os ombros e os olhos colados ao asfalto

15 comentários:

  1. Fenomenal a "visão" do mundo que o Sepúlveda nos traz. Sempre mt sensível.
    E esses velhos a olhar para o chão,podemos ser todos nós, os do lado "errado" de uma Europa (e Mundo) em tempos de crise. E isso é desolador.

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    1. É mesmo, Mesmica. Por isso destaquei essa frase. Um dia destes, damos por nós a reparar que são os nossos velhos, e não só, a não levantar os olhos do asfalto.

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  2. Vic, magnífico texto e tudo o que se está a passar por essa Europa está aqui descrito, ainda por cima acabei de ler o último livro do Sepúlveda continuo deslumbrada com as suas histórias.

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    1. Uns dos meus preferidos do Sepulveda, Rainha, O último dele, já comprei mas ainda não li. Vai a seguir :)

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  3. Nunca li nada do Sepúlveda, confesso. Esta amostra faz-me pensar que já é mais do que tempo de alterar isso.

    Obrigado, vic.

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    1. Sim, acho que não deves perder tempo, Troll. Quer nas crónicas, quer nos romances, como O Velho que lia romances de amor, são de leitura imprescindível.

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  4. Enquanto lia, pensava que era tu a descrever uma viagempor terras russas e imaginei todo o cenário. Que fluidez de texto.
    Tenho para mim, que olhar para o chão é sinónimo de tristeza.
    Olhar para o horizonte, para as copas das árvores, para o alto dos prédios, enfim olhar para cima indicia uma pessoa feliz, de bem consigo, pronta para sonhar e se elevar. Não têm idade estes olhares comprometedores
    Lindo, o excerto que partilhaste.
    Obrigada!

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    1. Para não fazer essa confusão, pus o texto em itálico, Pérola.
      É realmente muito bonito, o texto do Sepulveda. Não se devem perder a leitura dos seus livros de crónicas, nem os romances, todos excelentes

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  5. Nunca li nada deste autor, mas ao ler este bocadinho fiquei com vontade :)

    Bonito e triste este excerto :(

    :)

    *porque é que os comentários aqui ficam cheios de erros?

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  6. Engraçado, ficam com erros antes de eu comentar, depois quando publico já não há erros, nem no meu, nem no dos outros comentadores...estranho.

    :)

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    1. Maria, aconselho mesmo a ler tudo o que é de Sepulveda :)
      Quanto aos erros, não sei realmente se se passa alguma coisa estranha. Não dei por nada :). Mas pelos vistos, corrige-se.

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  7. também sou fã de sepúlvedra!! grandes histórias, muito bem contadas!

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  8. Absolutamente fantástico! Mas sou suspeita, que adoro Sepúlveda, embora este livro ainda não tenha lido.

    E sim, infelizmente esta história também me pareceu vir muito a propósito da Europa de hoje...

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  9. Nunca li nada dele, está na altura de ler. Gostei.

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  10. No seguimento do teu desabafo solidário com os que estão a sofrer a guerra financeira, gostaria de deixar uma frase de outro tão grande como o Sepúlveda:

    "A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos.” Mia Couto

    Infelizmente, assenta que nem uma luva!

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!