quarta-feira, 16 de maio de 2012

Incompletude

Há uns dias, o nosso troll trouxe uma história com raízes na sua infância, e ao correr do texto, instigou-nos a nós leitores, evocarmos algumas das nossas recordações de infância relacionadas com o assunto que ele abordava, o bullying ou algo semelhante, que só há uns poucos anos, tal designação entrou no nosso léxico. Na altura, dei uma pequeníssima achega à discussão, olvidando um episódio trágico-cómico que se passou quando andava na 4ª classe, e que, de certa forma, se encaixa no tema. 
A minha escola primária era exclusivamente de rapazes (antes do 25 de Abril, em Lisboa tal era muito vulgar e resultado da mentalidade tacanha de então) e relativamente pequena. Os meus pais escolheram-na em função da proximidade - era só descer a rua e atravessar a Alexandre Herculano, na sua desembocadura do Largo do Rato - e de ser uma instituição particular, o que, na altura, era sinónimo de qualidade do ensino. 
Face à sua reduzida dimensão, as aulas da 4ª classe eram dadas na mesma sala das da 2ª, e numa decisão da professora que se desdobrava entre as duas classes, cada aluno da 4ª tinha a seu "cargo" um dos da 2ª, que assim se tornava seu afilhado. O meu era o Óscar, um rapaz gordo, muito gordo, calado, mas nada estúpido, o que me facilitava a vida. Contudo, a sua aparência valia-lhe algumas sessões de gozo por parte dos outros putos, coisa muito desagradável para ele, que cada vez mais se recolhia no seu mutismo. 
Um dia, começou a sentir-se na aula, um cheiro nauseabundo. Toda a gente de nariz no ar, que seria aquilo, até que os olhares se fixaram no Óscar. Era dali que vinha o cheiro que empestava a sala. O Óscar - por uma questão logística tinha a sua carteira atrás da minha - estava pesadamente sentado, as lágrimas a escorrerem-lhe a cara, acompanhadas por um choro surdo, quase inaudível. Dos calções e pelas pernas abaixo, escorria-lhe uma pasta castanha, nojenta, que fedia o ambiente. 
Depois do estupor inicial, os miúdos romperam num alarido imenso, gargalhadas e apupos, que só amainou quando a professora evacuou a sala, ficando a sós com o Óscar para tentar perceber o porquê da situação. Não era difícil de entender, os miúdos de vez em quando abusavam nos pedidos para irem à casa de banho, ela irritava-se e quando a coisa passava as marcas ela recusava. O Óscar era demasiado tímido e medroso para suportar um não e acabou por se sujeitar à humilhação do enxovalho público, levado a cabo pelos colegas. 
O caso repercutiu-se durante uns dias, além das habituais ferroadas alusivas à sua figura desmesurada, juntavam-se agora as invectivas de "O Óscar é cagão", cantadas em coro. A abulia de Óscar era tão grande que aquilo foi esmorecendo naturalmente, acabando por desaparecer. Afinal, ele não "dava luta", e assim, o tema tornou-se rapidamente desinteressante. 
Nunca alinhei nas humilhações públicas dele. Não que fosse melhor que os outros, mas porque o primeiro sentimento que senti quando o vi naquela figura, foi de pena, de compaixão, a certa altura parecia que aquilo estava a passar-se comigo e partilhei da vergonha do Óscar. 
Dizem que as crianças são cruéis. Penso, pelo contrário, que é mais uma questão de não termos ainda a nossa sensibilidade devidamente apurada. Por isso, às crianças há atitudes que se perdoam facilmente, sem rancores, porque eles ainda não estão espiritualmente completos 
Já os adultos, não podem nunca alegar essa incompletude em sua defesa.

16 comentários:

  1. As crianças sabem ser más e muito cruéis, ainda bem que nunca me deu para andar a gozar com os outros. Uma vez, só uma vez, gozei com um colega meu - chamei-lhe escadote. Vim depois a saber que ele tinha uma paixoneta por mim. Mais de 10 anos depois, hoje quando passo por ele ainda me sinto mal pelo que fiz.

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    1. Sim S*, isso é verdade, mas penso que é pelo facto de não estarem moralmente formados por completo. Acho que os adultos não têm essa desculpa

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  2. Vic, se nos dias de hoje, visse um adulto a borrar-se todo à minha frente, depois do asco inicial, no mínimo ia sorrir. :)

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    1. Acredito, Troll. Mas já não acredito que o fizesses se fosse uma criança :)

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  3. Eu acho que as crianças são cruéis, sim. Por ainda não se conseguirem pôr na pele do outros, por terem uma sinceridade à prova de bala, pela insensibilidade própria de quem não sabe o limite até onde pode ir sem magoar sentimentos alheios ou por tu isso e mais alguma coisa. Mas não deixam de ser cruéis.

    Lembro-me de em miúda ter dito a uma tia-avó e a uma amiga da minha mãe que tinham nariz de bruxa. Mas se o da segunda era mais assim para o da Samantha em "Casei com uma feiticeira", o da primeira era assim mais para o de pugilista. Razão: tinha partido o nariz em jovem e naquele tempo a medicina era o que era... Mas enfim, não deixei de referir o assunto! E levei duas enormes descomposturas da mummy.

    Ah, e na escola (feminina, evidentemente) também tínhamos uma colega a quem apelidávamos de Margarida "a bucha". Mas gostávamos dela à mesma e brincávamos com ela! :D

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    1. Teté, é como digo, chão que é muito devido à sua imaturidade a nível intelectual e moral :)

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  4. Também andei numa escola dessas, já não com a divisão de sexos mas com a memória desses tempos. Eram duas, Escola de Cima e Escola de Baixo, meninas, meninos. A minha mãe tinha andado na de cima, eu apanhei a de baixo, mas a ela nunca devem ter chamado nada, tenho a certeza que era a Miss Popularity lá da zona. Já eu, se não calhásse terem medo de mim por ser grande... escadote, como diz a S* aí em cima, teria sido do mais meiguinho que apanharia.

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    1. Pois, Alexandra tu estarias mais na condição de vítima :)

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  5. As crianças podem ser muito cruéis. Depende da idade e da 'familia' em que se insere para descortinar a partir de que idade os comportamentos têm verdadeira maldade como motivo. Deixaram a meninice, nesse instante.
    Também andei na escola com segregação de géneros. Gostei muito quando veio o 25 de Abril e nos juntámos aos rapazes, mas as brincadeiras e os grupos mantiveram-se, separados por género. Há coisas que o social não faz: aquelas coisas instintivas, dos genes. Não há volta a dar, agimos sem pensar.
    Tudo de bom!

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    1. Concordo com o que dizes Pérola. Expende muito do que a circunda e da família :)

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  6. As crianças conseguem ser más, mas acho que é por ainda não serem socialmente polidas e não terem adquirido as regras de convívio social, muitas vezes também me apetece ser mázinha ou dizer coisas menos agradáveis a terceiros, mas já estou formatada e fico-me pelos pensamentos:)

    Já agora aproveito para me redimir dos meus pecados:
    Andreia desculpa-me por ter sido má para ti na escola, o nome de pata choca não era para ofender, no fundo até era carinhoso!

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    1. Exactamente, Rainha. Por isso digo que essas coisas, aos adultos, são difíceis de perdoar :)

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  7. Pobre Óscar :(

    Apesar de nunca ter sido má com alguém, confesso que quando acontecia alguma coisa fora do normal aos xico-espertos, àqueles que gozavam com tudo e com todos, me dava um certo prazer...provarem do seu próprio veneno, a alguns baixa-lhes a crista, a outros fazia-os ainda pior...

    :)

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    1. Eu não me metia com ninguém, nem nunca andava à pancada. Mas uma vez não me contive e dei um murro num dos bullies da escola. Fartou-se de chorar e toda a escola o apupou. Passou uma vergonhaça, Maria. Nunca mais se meteu comigo nem com qualquer outro :)

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  8. Eu era a miúda que defendia "os mais fraquinhos" das humilhações dos outros. Cheguei a fazer revoluções na escola.

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  9. Nunca fui de ridicularizar ninguém, concordo com o que dizes, mas a educação dos pais e meio envolvente, conta muito para o desenvolvimento da criança.

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!