domingo, 17 de junho de 2012

Aquele Olhar...

Foi um lampejo. Um olhar tão rápido, de segundos tão breves que dificilmente chegaria aos cinco. 
E no entanto, foi tão vincado, que marcou, fez questão de não se esvair na poeira dos minutos, das horas. Permaneceu ao longo do dia e ameaçou prolongar a estadia. Aquele olhar, quase negro, pintado numa cara pequena, suja de um sujo acumulado de muitos dias, um encardido do pó dos escapes e de rastos de comida, escassa, decerto, mirou-me fugidiamente mas contou-me breve, muitas das histórias que encerrava. Ou eu, pretensioso, assim pensei. 
Disse-me como já conhecia aquela esquina quase de cor, e como se cansava de apanhar frio ao colo da mãe. E mais ainda, quando ela o pousava na calçada, em cima de um cartão encostado à parede. Contou-me de como achava estranhas as correrias da mãe à frente de uns homens fardados, que pareciam fazer-se propositadamente lentos para não a alcançar, e de como ela sorria para eles e eles para ela, quando por fim abrandavam. 
E de como achava intrigante que depois ela voltasse ao mesmo sítio. Disse-me das noites que se pegavam às madrugadas e estas aos dias e como parecia que era tudo idêntico como se o dia fosse composto por vinte e quatro horas iguais entre si, sempre dolorosamente custosas de passar, e que pouca diferença lhe fazia que fizesse sol, chuva ou vento, fosse de dia ou de noite, porque a fome que lhe abria um buraco no estômago e um vazio nos intestinos que roncavam sempre porque trabalhavam em vão, e o desconforto que lhe gretava a pele, quase se mantinham inalteráveis e insubmissos às poucas tréguas que a caridade alheia lhes dá. 
Contou-me das muitas horas à espera de um bocado de pão velho devorado como se fosse o melhor bolo da vitrina da pastelaria que, ao colo da mãe, todos os dias olhava, miragem que sabia jamais provaria, e de como quase já nem se lembrava do sabor doce do leite. Ou da sorte que acendia uma pequena chama dentro de si, quando um passante mais generoso convidava a progenitora para um pequeno-almoço mais composto, tomado a desoras na mesma pastelaria, onde o empregado os atendia mal e contrariado, como se ambos tivessem carraças ou alguma doença contagiosa. 
Disse-me dos vãos de escada, dos bancos de jardins, de dormidas ao relento, dos cobertores feito de cartão prensado. Do frio extremo, e do calor insuportável. Contou-me que não sabia o que queria dizer o verbo brincar 

Aqueles olhos não olham só. Rasgam as almas de quem lhes devolve o olhar. 
Aqueles olhos carregam consigo todas as dores, todas as misérias de todos os meninos do mundo. 
São uns olhos tristes. De uma tristeza tão profundamente infiltrada na carne, que me interrogo se alguma vez aquela criança aprenderá a sorrir.

(foto da net)
                                                                                                                         

                                                                                                                                                        (2005)

9 comentários:

  1. :( infelizmente Vic....
    as crianças que não chegam a ser crianças....

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  2. Vieram tantas coisas à tona, ao ler-te!
    O meu pai, em menino, tão pobre que esperava que alguma criança morresse para poder herdar os sapatos, mas tinha teto, tinha pão, a maioria das vezes, e alguns meninos nem isso tinham;
    Alunos que vão para a escola sem comerem desde a véspera-na escola;
    Crianças nos hospitais por onde tenho passado-alia-se a doença à extrema pobreza!;
    O olhar de uma menina, dos seus 4 anos, no carro da frente, virada para trás...perseguindo-me numa enorme avenida, sempre que os semáforos ficavam vermelhos...quase a pedir-me ajuda.
    E tantas outras situações!
    Sempre disse "até para nascer é preciso ter sorte.":(

    (bonito texto!)


    Nina

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  3. Infelizmente há crianças mesmo infelizes... todas as crianças deveriam ser felizes, ou no mínimo um assim-assim... mas depois surgem esses olhares vazios, desprovidos de afecto, de amor.

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  4. É lindo, este teu texto, Vic. Quase que deu para esquecer aquela da (outra vez!) Maria Rueff...

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  5. Texto lindo!
    E, acredita, há por aí muitas crianças com os olhos tristes e não é (só) por estar 'à espera de um bocado de pão velho devorado como se fosse o melhor bolo da vitrina da pastelaria'.

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  6. Magnífico texto! e a espelhar a realidade do quotidiano de muitas crianças, o que é triste.

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  7. Um olhar tão pertubador pela sua proximidade do real.
    Comovente, enternecedor e melancólico.
    Um beijo.

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  8. Tomamos tanto como garantido... E tantas vezes escolhemos virar a cara em vez de enfrentar a dura realidade...

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  9. Fantástico texto, Vic!

    Há olhares assim, que nos dizem muito, sem que os lábios se abram!

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Eu leio todos com atenção. Mas pode não ser logo, porque sou uma pessoa muito ocupada a preencher tempos livres!